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Agente de saúde desafia ‘cidade dos carros’ e usa bicicleta

Entre calçamentos e asfaltos ruins, ela se arrisca no meio de uma cidade com 355 mil veículos motorizados

Andar de bicicleta em qualquer grande cidade brasileira é um desafio, não só pelos poucos espaços específicos para ciclistas, mas também pelo alto índice de violência. Em um país onde cerca de 40 mil pessoas morrem anualmente no trânsito, pedalar em trechos compartilhados por veículos motorizados é um risco. Angélica da Silva Santos, de 35 anos, não se assusta com esses dados. Agente de saúde municipal, a servidora pública de João Pessoa (PB) pedala todos os dias para o trabalho e faz cerca de dez atendimentos diários sobre os pedais.

A jornada de Angélica começa cedo. Após um rápido café da manhã, ela se apronta e põe a bolsa na cesta da bicicleta. É hora de começar o trajeto. A agente de saúde sai de casa por volta das 7h e segue pela rua onde mora até uma avenida principal. Entre calçamentos e asfaltos ruins, ela se arrisca no meio de uma cidade com 355 mil veículos motorizados e conta como é difícil trafegar de bicicleta em uma capital que tem 58 km de trechos para ciclistas, mas nenhum deles no bairro do Cristo Redentor, onde ela mora e trabalha, na Zona Oeste de João Pessoa.

“Passo por várias situações difíceis. As ruas têm muitos buracos e para desviar deles, tenho que me expor aos carros. Ônibus e carros passam por mim e não têm muito respeito. Muitas vezes tenho que subir nas calçadas para o carro não bater em mim”, afirma ao Portal Correio, narrando o quanto os motoristas ignoram a Lei de Mobilidade Urbana.

A agente de saúde atribui essa falta de respeito no trânsito à pouca educação e à falta de entendimento de que a bicicleta não é apenas para lazer, mas um importante meio de transporte. “Eles não têm educação para ver aquilo [a bicicleta] como um meio de transporte. Acham que o ciclista está atrapalhando. Não respeitam porque não têm educação”.

Angélica sabe que João Pessoa tem ciclovias, ciclofaixas e faixas preferenciais espalhadas por 12 localidades, mas ela nunca experimentou andar em nenhuma delas, já que a mais próxima fica a cerca de 6 km do bairro onde ela mora e está completamente fora do percurso que precisa fazer diariamente. “As ruas são feitas só para carros. Conheço as ciclovias, mas nunca utilizei nenhuma delas”, explica.

O chefe da Superintendência Executiva de Mobilidade Urbana de João Pessoa (Semob-JP), Carlos Batinga, reconhece que ser ciclista e pedestre na capital paraibana é um desafio perigoso, mas defende projetos atuais e os que seguem em fase de implantação – mesmo que ainda não sejam suficientes. Ele também critica o que chama de “cultura do automóvel”.

“Sem dúvida é um desafio andar a pé e de bicicleta em João Pessoa. A cultura do automóvel foi bastante incentivada e transformou as cidades para carros e máquinas, esquecendo as pessoas. O grande trabalho nosso é humanizar as cidades e isso passa pelo investimento em circulação de pessoas em modos não motorizados. Quando se tem esse investimento, boa parte das pessoas critica e defende espaços urbanos para os automóveis, não para pessoas. Ao longo do tempo, calçadas e canteiros foram desfigurados para dar espaço ao automóvel e nenhuma cidade do mundo conseguiu resolver problemas de mobilidade através do sistema motorizado. Foi sempre investindo no transporte coletivo e nos modos não motorizados”, afirma.

Para Batinga, ter espaços para ciclistas é fundamental para que se tenha uma cidade sustentável. Consciente de que João Pessoa ainda deixa a desejar na quantidade de espaços para ciclistas, ele explica que essas alterações não ocorrem de forma rápida e além de precisarem de investimentos, podem demorar anos para que sejam efetivadas.

“O espaço para ciclistas e pedestres é fundamental para você ter uma cidade sustentável, com mobilidade urbana funcionando. A Lei da Mobilidade prioriza modos não motorizados e o transporte coletivo, em detrimento ao individual motorizado. [Estamos] implantando ciclovias e ciclofaixas, como a da Avenida Beira-Rio. O Plano de Mobilidade de João Pessoa inclui um projeto de rede cicloviária que venha a ser dado continuidade em várias administrações. Para que você construa essa rede, não vai ser de um ano pra outro, mas é fundamental que se tenha esse planejamento”.

Angélica não espera por esse plano de mobilidade para seguir seu trajeto diário. Sem medo, ela encara a jornada sabendo de todos os riscos que corre, sem nunca ter passado por nenhum problema grave e sem usar equipamentos de segurança.

“Nunca caí, nem nunca atropelei nem bati em ninguém. Não uso material de segurança nem de sinalização, mas reconheço que é um erro meu. Esqueço que é necessário e tenho que melhorar”.

Os equipamentos de segurança para ciclistas são fundamentais. Mesmo que não eliminem todos os riscos, eles podem reduzir possíveis gravidades em casos de acidentes. Quem explica é Carlos Augusto Santana, conhecido como ‘Guto’, membro do grupo ‘Salva Bike’, que reúne ciclistas de João Pessoa e região metropolitana.

“O primeiro equipamento, com certeza, é o capacete. O segundo são as luvas, para não arranhar as mãos, e o terceiro são os de sinalização, como lanternas dianteira e traseira. Em uma queda, geralmente se bate logo a cabeça; o segundo [a sofrer impacto] são as mãos, porque você vai querer se defender”, diz ele ao Portal Correio.

Mesmo sem nunca terem se visto para conversar sobre o assunto, Angélica, Batinga e Carlos Augusto têm a mesma opinião sobre as dificuldades para ciclistas nas grandes cidades. Enquanto Batinga reforça o discurso de que “todos somos pedestres” e Angélica critica a falta de respeito dos motoristas, Carlos Augusto não pensa diferente e vai mais longe, ao mandar uma mensagem para a agente de saúde e afirmar que falta “amor ao próximo” no trânsito.

“Angélica, independente dos horários, você tem que estar preparada fisicamente, psicologicamente; os equipamentos de segurança você tem que estar com eles. Mesmo que seja um trajeto pequeno, pelo menos use o capacete. Tenha amor a você mesmo, porque os outros não vão ter”, alerta, em recado direto para Angélica.

Apesar de todos os perigos, Angélica nem pensa em trocar a bicicleta por um transporte motorizado. “Gosto de pedalar; me acostumei, não fiz nenhum esforço até hoje para trocar a bicicleta por uma moto”, finaliza a agente de saúde.

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