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Vazio

Numa noite de fevereiro de 1942, protegidos pelas espessas paredes de sua casa rural em Aichach, nos arredores de Munique, Alemanha, um casal se sentia isolado do mundo.

E efetivamente estava:

Lá fora, desabando pesadas camadas de neve, troava um dos invernos mais rigorosos dos últimos anos. E algo que amedrontava ainda mais (infinitamente mais) Johann e Rosa Hutzler: a sangrenta e destrutiva Segunda Guerra Mundial.

Nesta noite, com a natureza e os homens em contenda, eles conceberam uma criança.

O medo da guerra e a ameaça do inverno poderiam ter sido o mais efetivo dos contraceptivos. Mas não para o casal Hutzler.

Nos meses que se seguiram, o temor cercou o ventre de Rosa. Munique, cidade mais próxima da propriedade dos Hutzler, estava sendo destruída.

O mundo havia se unido para derrotar um alemão – e a pluralidade da nação seria igualmente castigada.

A despeito de tudo isso, em novembro nascia o saudável e sapeca Georg.

Que viria a ser meu cunhado, amigo, irmão e tripulante de tantas aventuras no mar.
Sua primeira infância foi cercada de tensão.

A guerra só terminaria três anos depois – dando início a um dos momentos mais duros da história alemã, derrotada e ocupada pelos inimigos.

Neste ambiente, Georg passou boa parte de sua juventude alimentando um desejo crescente: descobrir o que estava além daquele isolamento combalido.

E lá foi ele conhecer o mundo.

Como tripulante de um navio, aportou em um punhado de países. Visitou meio mundo. E foi parar nos Estados Unidos, onde exerceu atividade de técnico agrícola.

Em 1968, desembarcou no Brasil. Mais precisamente em Garanhuns (PE), integrando uma comitiva alemã de cooperação agrícola.

Mais uma vez experimentou o isolamento.

Era difícil encontrar, no agreste pernambucano, alguém que soubesse falar alemão ou inglês.

Encontrou Celina, com a fluência adquirida nos vários anos de estudos nos Estados Unidos.

Não se separaram mais.

O casamento, realizado dois anos depois, duraria 44 anos – encerrado em 2014 com a morte de minha irmã. E irremediavelmente sepultado esta semana, quando Georg foi ao seu encontro numa dimensão onde todos haveremos um dia de nos reencontrar.

Foi duro me despedir de Georg.

O alemão que se enamorou de Celina e do Brasil nos adotou como família substituta daquela que deixou tão longe – ocupando, na minha vida, o espaço do irmão que meus pais não puderam me dar.

Sua partida rompe o último elo efetivo e afetivo com o meu berço.

Todos se foram – pai, mãe, irmã, irmão-cunhado.

Toda a minha origem passou. Minhas referências sucumbiram ao tempo.

É dolorosa a consciência de que, a partir de agora, só posso me abraçar com quem
gerei – meus filhos e netos. Quiçá, os bisnetos. E, claro, os amigos – a família “escolhida” que abraçamos por amor.

A saudade, porém, não se abraça – embora ela nos envolva com mãos pesadas, quase sufocantes.

No adeus a Georg, olhei para o retrovisor da minha vida.

E enxerguei o vazio.

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