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Autores e diretores lembram o talento de Lourdes Ramalho

Pergunte a um ator, diretor, dramaturgo, enfim, qualquer profissional do teatro paraibano sobre Lourdes Ramalho e a resposta será a mesma: a maior. A dramaturga, que faleceu no fim de semana passado aos 99 anos, é considerada a grande dama do teatro paraibano, responsável pelo texto de espetáculos como A Feira, Anáguas e As Velhas, além de dezenas de outros, encenados até hoje por grupos de todo o Nordeste.

A escritora, dramaturga, cordelista e pedagoga nasceu em 1923 em Jardim do Seridó, no Rio Grande do Norte, mas aos 15 se muda para a Paraíba. Em 1958, estabelece residência em Campina Grande, cidade onde começaria a trabalhar com seu ofício como professora e dramaturga.

Ao longo da vida, escreveu mais de cem textos teatrais, alguns ainda inéditos. O impacto de suas obras lhe rendeu uma série de homenagens, indicações e premiações, inclusive internacionais em países como Portugal e Espanha. O escritor e dramaturgo Astier Basílio faz questão de salientar o aspecto técnico da escrita teatral de Lourdes Ramalho.

“Há um poderoso senso de carpintaria teatral. Uma dramaturgia em que se vê um talento absurdo na construção cênica. Isso aliado à tradição do teatro poético, cujo modelo é Gil Vicente, mas que ganhou, com o requinte de Dona Lourdes, a amplitude do verso de cordel”, pontua.

Essa intimidade com o verso lhe rendeu publicações na poesia, a exemplo do livro Flor de Cacto, lembrada por Astier. “Estruturalmente, ninguém conseguiu conciliar com tamanho equilíbro e riqueza o verso poético narrativo com as necessidades do palco. Quando os poetas tendem à dramaturgia, em geral, fazem literatura. Dona Lourdes, não. Sua poesia era irretocável e seu senso das necessidades da cena também. Ninguém entre nós chegou tão longe como ela”, completa o dramaturgo.

Uma das grandes admiradores e pesquisadoras de sua obra é a professora Valéria Andrade. Ela entrou em contato com o trabalho de Lourdes em 1997, quando cursava o doutorado em Letras na UFPB. “Paguei uma disciplina sobre dramaturgia nordestina com o professor e diretor Paulo Vieira. A única autora mulher que fazia parte do conjunto de autores que ele elencou para estudarmos foi Lourdes Ramalho. Li A Feira e, de cara, me encantei”, relembra.

Por desenvolver um trabalho de pesquisa sobre a literatura de autoria feminina, a obra de Lourdes lhe chamou bastante a atenção, algo que foi crescendo gradualmente. Seus personagens femininos, especialmente, lhe despertaram interesse. Anáguas, montada até hoje pela Cia Ôxente, foi um dos primeiros textos analisados por Valéria.

O enredo, ancorado na vida de uma matriarca e duas de suas filhas, apresenta carga dramática forte e discute as representações sociais da mulher no contexto do interior do Nordeste. “Esse texto, especialmente, trata da submissão imposta ao gênero feminino. O curioso é que, não apenas nesse, mas em vários outros textos teatrais dela, Lourdes  retrata essa submissão sempre com pequenos elementos de insubordinação e revolução, algo bastante à frente de seu tempo”, explica a pesquisadora, considerando que Lourdes começa a escrever com mais frequência a partir dos anos 1970, em pleno período ditatorial do país.

O ator e diretor Duílio Cunha participou de uma das montagens famosas baseadas em texto da dramaturga. As Velhas, de 2000, contava com Zezita Matos e Ingrid Trigueiro no elenco, sob direção de Ângelo Nunes. “A sensação que eu tenho é que era um texto muito elaborado, rebuscado, mas ao mesmo tempo muito nosso, que imprimia reconhecimento, aquela sensação de voltar para casa”, salienta.

Esse misto de sentimentos, em sua opinião, se deve à sofisticação de sua escrita e sua habilidade de costura dramatúrgica. “Ela conseguia engendrar tudo, dialogava com a tradição do teatro, como a tragédia grega, mas também tinha profunda conexão com nossa cultura, com a ancestralidade”, analisa.

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A força de Lourdes Ramalho também vinha de sua personalidade. As pessoas que conviveram com a autora carregam consigo lembranças e histórias que ajudam a entender a origem daqueles textos impactantes que encontramos no palco.

Uma delas é o ator Gilmar Albuquerque, que trabalhava com ela desde os anos 1970. “Aos 14 anos, comecei a fazer teatro, com duas pequenas experiências. Foi Lourdes quem me introduziu a este universo de fato”, relata. Com o então Grupo Feira, criado pela dramaturga, que também era professora, para trabalhar espetáculos com seus alunos, circularam por todo o país.

“Era uma irmandade. Vivíamos praticamente na casa dela, com a família dela. A Lourdes era aquela matriarca, aquela grande senhora vinda do Sertão e a casa era sempre uma grande festa. Tudo cheirava a comida, ao pão quentinho, doces caseiros, manteiga da terra, frutas, em meio a cenários dos espetáculos, textos espalhados pela casa. Uma grande loucura”, define.

Anos depois, era cercada pelos vários netos, sua forma predileta de trabalhar. “Ela vivia dizendo que só conseguia criar daquele jeito, com os netos a solicitando, puxando, pulando por cima. Era um momento de conexão”, salienta Gilmar Albuquerque.

Duílio Cunha, que viria a conviver com ela mais à frente, salienta sua participação ativa em montagens teatrais. “Lourdes não é essa pessoa que tem uma história para contar e vai sentar abstratamente em casa para escrevê-la. Ela elaborava seus textos pensando em um grupo, era alguém muito presente nos ensaios até enquanto dava. É uma mulher de muita leitura, observadora e que mais ouvia do que falava. O que ela realmente pensava estava ali, no texto”, completa.

“Talvez Dona Lourdes seja uma das dramaturgas mais montadas do Nordeste. Provavelmente, agora deve haver, em algum lugar, de Alagoas à Bahia, alguma peça dela em cartaz. Ela falou para nós. De nossos temas. Com o nosso jeito de falar. Dona Lourdes amou o palco e foi correspondida.” – Astier Basílio, escritor e dramaturgo

“Sua morte deixa um vácuo profundo, pois ainda há muito desconhecimento a respeito de Lourdes Ramalho. É preciso continuar estudando, lendo e montando sua dramaturgia, que permanece extremamente atual.” – Gilmar Albuquerque, ator

Principais obras

 ‘A Feira’

O choque entre a vida rural e a crescente urbanização se revelam em uma feira pública de Campina Grande, mostrando a degradação humana diante da modernidade;

 ‘As Velhas’

As rivais Ludovina e Mariana são obrigadas a passar as rixas a limpo quando seus filhos se apaixonam;

 ‘Anáguas’

Uma matriarca e duas de suas filhas revelam as mágoas e rancores guardados em um casarão.

*Texto de André Luiz Maia, do Jornal Correio

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