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Professor Trindade

Quando a gente escreve para uma celebridade, tem sempre receio de que ela não vá responder e sobrevir a decepção.

Qual não foi minha alegria ao ter um “e-mail” meu respondido por ninguém menos que o jornalista e escritor Ruy Castro.

Sou fã de Ruy; para mim, o maior cronista da atualidade, no Brasil.

Em que pese ser mais destacado na mídia como biógrafo, o cronista Ruy é inigualável; seja nas crônicas de Folha de São Paulo, seja nas publicadas em livro. Tenho como livros de cabeceira – e os consulto, frequentemente – “A Palavra Mágica” e “A Canção Eterna”, que saíram pela Cosacnaify. Apesar de chamados pela editora de “pequenos ensaios”, são crônicas maravilhosas, deliciosas, bem escritas e que nos ensinam a vida, a história da literatura, da música, do cinema e tantas coisas mais. O primeiro volume citado tem um texto antológico, em que Ruy descreve, magistralmente, um encontro entre João Cabral de Melo Neto e Chacrinha (sim, João Cabral e Chacrinha!), na Fiorentina (Rio). Não me canso de reler tal crônica; e só ela já vale a compra do livro.

São muitas as coisas que me unem, espiritualmente, a Ruy, desde o amor ao Rio, ao sorvete de baunilha (descobri numa das memoráveis crônicas dele), à defesa intransigente dos nossos valores culturais e, apesar de não se poder falar de influência do estilo do escritor no meu fazer literário, ouso dizer que – guardadas as devidas proporções – meu estilo de crônica parece com o dele (espero que não vá ficar chateado, ao ler essa observação). Mas qual o fã que, mesmo às vezes, ilusoriamente, não se compara com o ídolo?

Outro ponto em comum entre mim e Ruy é a crítica ácida (porém nunca sem sentido ou com ranço) em relação à supervalorização da Semana de Arte Moderna.

E foi justamente isso que me levou a criar coragem e mandar para Ruy, via correio eletrônico, uma crônica minha, publicada aqui no Portal Correio, em que procuro desfazer essa idolatria sem sentido pela e supervalorização da Semana de Arte Moderna.

Em resposta, além do elogio ao meu texto (o que, é claro!, me deixou “nas nuvens”) o mestre me enviou um capítulo do livro “Metrópole à Beira-mar”, de autoria dele, em que descreve, com ricos detalhes, a expedição de Roquete-Pinto à Amazônia, em 1912, segundo diz no “e-mail”, “bem diferente da excursão turística do Mario de Andrade e grã-finos a Minas Gerais em 1924 [!], na qual eles ‘descobriram o Brasil’”.

E acrescenta: “Para você ver que a empulhação não foi só literária…”.

Segue-se a descrição da parte do capítulo citado em que Ruy descreve a expedição de Roquete-Pinto (os grifos em negrito são do próprio autor):

(…) Mas, em 1912, aos 27 [anos], ao juntar-se ao tenente-coronel Candido Rondon, a convite deste, numa expedição do Mato Grosso ao Amazonas, passando pelo Acre, Pará e Guaporé, Roquette viajaria à própria pré-história – em busca de tribos indígenas que, em plena alvorada do século XX, ainda usavam machado de pedra.

O mato-grossense Rondon, nascido em 1865, já estava no Amazonas e no Acre desde 1890, desbravando a selva, criando povoados, demarcando fronteiras, estendendo fios telegráficos e fazendo os primeiros contatos com tribos à margem de qualquer civilização, como os parecis, os kabixis, os tapanhumas e os cajabis. Em suas expedições, Rondon levava geólogos, cartógrafos e outros peritos. Mas, pela primeira vez, ele teria um homem à altura – porque, por sua multiplicidade de interesses, Roquette valia por uma equipe.

Naquela expedição, Roquette foi etnógrafo, sociólogo, geógrafo, arqueólogo, botânico, zoólogo, linguista, médico, farmacêutico, legista, fotógrafo, sonoplasta e folclorista. Anotou toda a aparência da região – folha, árvore, floresta –, a composição dos solos, o contorno dos rios, a intensidade das quedas d’água e a variedade da fauna. Nas visitas às tribos já pacificadas, mediu o crânio dos índios, comparou seus pesos e medidas, analisou suas endemias e descreveu suas formas de produção, comércio e transporte. Registrou seus conhecimentos científicos, relações familiares, organização política, hábitos religiosos, formas linguísticas, habilidade manual e até suas coreografias. Realizou também a primeira dissecação de um indígena – aliás, uma indígena – de que se tem notícia. Anotou musicalmente seus cantos e, não contente, gravou-os em cilindros de cera com um fonógrafo portátil que se usava na época. Em parceria com outro membro da expedição, o baiano Luiz Thomaz Reis, Roquette filmou tudo que pôde e fotografou ou desenhou o resto. Sem contar o que recolheu de pedras, pontas de flechas e objetos indígenas, que transportou através de rios, pântanos e picadas abertas na selva.

A morte os acompanhava. Dias e dias de caminhada podiam ser feitos sem sol visível, debaixo da espessa vegetação – cada quilômetro avançado era uma façanha. O objetivo da expedição era a pacificação dos nhambiquaras, até então arredios a qualquer contato com o colonizador. Arredios e hostis. Os mateiros de Rondon eram flechados à distância por mãos invisíveis; outros eram capturados e devolvidos sem cabeça; e ainda outros caíam nas armadilhas postas por eles. E havia as ameaças permanentes da selva, como o calor, os animais e as doenças – varíola, beribéri, impaludismo. Burros, cavalos e bois morriam pelo caminho e eram deixados para trás. Os homens eram enterrados, e Rondon batizava com seus nomes os acidentes geográficos do percurso. Mas, para o sacrifício de cada homem ou montaria, a expedição garantia um pedaço de chão que se incorporava efetivamente ao Brasil.

Os nhambiquaras foram contatados e, sendo Rondon mameluco e falando os dialetos de várias tribos, nunca o choque entre o “selvagem” e o “civilizado” foi tão suave e humano. Com eles, Roquette conheceu a Idade da Pedra. Os machados dos nhambiquaras eram de pedra mal polida. Suas facas, de lascas de madeira. Não conheciam a navegação, a cerâmica ou as redes de dormir – donde atravessavam os rios a nado, comiam da mão para a mão e dormiam direto no chão. Eram cobertos de bernes, pulgas e piolhos. Nunca tinham visto um homem branco ou negro. E o mal que faziam era, muitas vezes, por ingenuidade – ao ouvir o zumbido dos fios telegráficos, pensavam que o poste ocultava uma colmeia e o derrubavam em busca do mel. Quando Rondon finalmente conseguiu que se aproximassem do acampamento (o que se deu à zero hora de uma noite memorável para Roquette), seus presentes para eles foram de um comovente simbolismo: machados de aço.  

De volta ao Rio no fim do ano, Roquette depositou no Museu Nacional uma tonelada e meia de objetos, que transportara em carro de boi pela selva. As anotações musicais foram entregues ao jovem Villa-Lobos, que as harmonizou e elaborou em composições. E, em seu organismo, Roquette trouxe também o impaludismo, cujas sequelas o acompanhariam para sempre. Mas, para ele, o principal foi a compreensão do problema do índio, que aprendera com Rondon: “Nosso papel social deve ser simplesmente proteger, sem procurar dirigir nem aproveitar essa gente”, escreveu. “Não devemos ter a preocupação de fazê-los cidadãos do Brasil. Índio é índio, brasileiro é brasileiro. A nação deve ampará-los e mesmo sustentá-los, assim como aceita, sem relutância, o ônus da manutenção dos menores abandonados ou indigentes e dos enfermos.

Por tudo o que foi escrito, linhas atrás, é que fiquei muito emocionado ao assistir, pela TV, ao meu cronista preferido receber o Prêmio Machado de Assis, da Academia brasileira de Letras, lugar em que já deveria estar, há muito tempo, e não apenas para uma condecoração.

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