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Professor Trindade

Já nos cinemas, o filme “A paixão Segundo G.H.”, baseado no livro homônimo de Clarice Lispector, dirigido por Luiz Fernando Carvalho, tendo como atriz principal Maria Fernanda Cândido, que interpreta G.H., a personagem da narrativa, cujo foco é de primeira pessoa.

Aproveito a “deixa” para fazer algumas considerações sobre o livro e deixar o leitor mais a par da prosa de Clarice.

“A Paixão Segundo G.H.” é uma obra incomum e de difícil (ou talvez impossível) classificação. G.H. – a personagem – narradora – pratica um penoso e angustiante mergulho em si mesma, buscando uma identidade que justifique as razões de viver, de sentir e de amar.

Não há um enredo, uma história. O livro retrata um confronto entre a personagem -narradora (G.H.) e o seu “eu”, que age como interlocutor.

No apartamento dela, no último andar de um prédio de treze pavimentos, flagra-se a tomar café da manhã, automaticamente. Isso a assusta, porque desperta nela o sem-sentido do cotidiano alienado. Resolve, então, visitar o quarto da empregada, que se demitira.

Fazia seis meses que não entrava ali. Ao entrar, ela penetra em seu vazio interior. Aflita, procura alguma coisa para fazer, mas não acha nada. Eis que surge uma barata, saindo do armário. Nesse momento, emerge na narradora a consciência da solidão de ambas (ela e a barata). O nojo pelo inseto é inevitável e a desafia, assustadoramente. É preciso aproximar-se do inseto, tocá-lo e até provar-lhe o sabor. Para regressar ao seu estado primitivo, selvagem e mais feliz, G.H. deve passar pela experiência de experimentar o gosto do inseto. Por meio da “provação”, G.H. estaria fazendo uma reviravolta em seu mundo, condicionado, asséptico, alienado.

Segundo Mário Sérgio Conti, em artigo publicado na FolhadeSãoPaulo, edição de 13 de abril deste ano, o diretor é fiel à prosa “turva e maçante” (concordo, plenamente com ele!) da escritora, não “barateia” a trama inventando falas ou personagens. E acentua: “O que o filme faz é acentuar cenas e temas para que se tornem os nervos da trama”.

Em relação à atuação da atriz Maria Fernanda Cândido, o fenomenal e erudito jornalista assinala:

Para comparar a interpretação dela em ‘A paixão segundo G.H.’ seria preciso voltar à de Renée Falconette, em ‘A paixão de Joana D’arc’, obra-prima do cinema mudo (…).

Como a atriz francesa, Maria Fernanda Cândido está quase sempre em primeiro plano. Suas expressões, lágrimas e sorrisos dão vida a todas as nuances de G.H.

Todos ao cinema!

Momento de Poesia

“Sentimento Secreto

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele o sol ardente

Que, igual vigia a observar,

Das alturas a tudo ver.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele o vento presente

Que jaz e cabe em todo lugar

E que a tudo escuta e ver.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele a lua reluzente

Que, no céu noturno a levitar,

Vela todo o meu dormecer.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele o mar incidente

Que na praia vem me banhar

Para abrandar o meu arder.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele a árvore vivente

Que sombreia o meu penar,

Inerte a encobrir o meu gemer.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele a flor confidente

A quem me confesso a indagar:

Bem me quer mal me quer.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele o rio corrente

Que desce da serra ao mar,

Lavando e levando o meu ser.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele a ave eloquente

Que, com seu doce cantar,

Conforta o meu triste viver.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele a estrela cadente

Que salta na noite a cintilar,

Esperançando o meu querer.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele a rocha resistente

Que, indiferente ao meu estar,

Dá assento ao meu jazer.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele a estrada conducente,

Por onde passo a suspirar

Pelo amor que almejo ter.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.

O amor que te tenho a dar

É segredo para toda a gente.

Sabe dele o coração ausente

Que jaz consigo em todo lugar,

Sabedor de todo o meu sofrer.

Mas não tem língua para falar,

Tampouco mão para escrever.”

(Jorge Gonçalves de Abrantes, poeta paraibano. In: “Poesia Desmedida”, editora Insular, 2021).

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