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Edilson Pereira Nobre Júnior

Há muito fiz a promessa de que doravante somente leria livros curtos. O máximo seria trezentas páginas, mas a escassez do tempo, cumulada com a expectativa cada vez menor de meus dias como locatário terreno, fez com que reduzisse essa extensão para duzentas.

Mas, quando da leitura do caderno Aliás, do Estadão, num desses finais de semanas de tranquilidade, deparei-me com a resenha de “Os europeus: o século XIX e o surgimento de uma cultura cosmopolita”, de Orlando Figes.

Foi uma paixão ao primeiro instante, somente amenizada com o clique que propiciou o acesso à obra pelo Kindle. Como um apaixonado dos mais pueris, não percebi que a obra possuía quase mil páginas. Novecentas e trinta e sete, para ser fidedigno.

A leitura, não somente pela suavidade da linguagem, tal qual a uma melodia de Jobim, foi das mais prazerosas. Ao leitor é confiado o relato sobre a transformação que sofreu a Europa a partir do surgimento das ferrovias, permitindo, pelo intercâmbio entre os países, uma revolução cultural nas letras, na música e na pintura.

Os detalhes do cotidiano da sociedade europeia e dos seus personagens, suas extravagâncias, seus relacionamentos amorosos, especialmente os proibidos, hipnotizam o leitor de tal forma que este sucumbe à tentativa de parar.

Como sempre, abstenho-me do relato das passagens principais que, inúmeras, aproximam a curiosidade do leitor ao infinito. Fixo-me em um detalhe, que se duplica, mas que permanece longe de estragar o prazer de quem ainda não descortinou a obra.

Encontra-se à página 84 uma referência à lei Guizot de 1833, assim nominada em homenagem ao político liberal, ministro do Rei Luís Felipe, que a idealizou, a qual instituía a obrigação de todo município ou comuna manter uma escola pública.

Os frutos da iniciativa foram imediatos e benfazejos, possibilitando que tanto o balconista quanto o artesão pudessem se interessar avidamente pela leitura de romances. Contornando o custo das obras, o Journaldesdébats fez surgir, a partir do romance LesMystères de Paris, de Eugène Sue, a publicação em folhetins, aumentando rapidamente em milhares de exemplares as vendas do periódico. Estimou-se, de junho de 1842 a outubro de 1843 entre quatrocentos a oitocentos mil, o número dos leitores da história, sem contar que as dez traduções no mínimo duplicaram tal quantitativo. Assim, dezenas de milhares de franceses mais pobres puderam ter acesso ao texto em capítulos de cinquenta centavos.

Às proximidades de um final, que o leitor deseja que nunca chegue, lê-se com alegria a narrativa de que, no último quarto do século XIX, a proporção da população alfabetizada dos países europeus se elevou bastante, de modo a permitir que fossem comercializadas coleções de livros que condensassem as obras ditas clássicas, inclusive com edições de bolso, para atender a população de baixa renda.

Talvez isso explique porque a Europa, mesmo após dois grandes conflitos, implantou um Estado social e alcançou um nível de maturidade política democrática invejável.

Às vezes penso que se tivéssemos seguido esse exemplo desde a independência, quem sabe a população não chegasse a um nível de conscientização tal que se revoltaria contra os gastos públicos com o custeio de shows voltados à política do “pão e circo”.

Fica o lamento.

P.S.: Faço saber que essas passagens atomizadas de “Os europeus” não ofuscam o brilho das milhares que restaram preservadas para uma leitura inesquecível.   

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