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Professor Trindade

Tinha eu catorze anos, quando, cansado de passar privações, comuniquei à minha mãe:

– Vou falar com o governador. Não é possível que, depois de tanto que meu pai o ajudou, ele não faça alguma coisa por a gente.

– O governador não vai nem lembrar quem é seu pai.

– E fui. Peguei o 1º de Maio e, minutos depois, estava na Praça João Pessoa, na porta do palácio.

Não sei por quê, mas os dois guardas que estavam na porta não detiveram aquele menino franzino e mal vestido.

Já estava a meio caminho, quando uma voz me para: era Múcio Sátyro, então deputado estadual e sobrinho do governador:

– Ei, menino; onde vai?

– Falar com o governador.

– O governador não recebe meninos.

De forma educada, porém firmemente, o deputado me levou até à porta, apontando a rua.

Eu, porém, não desisti. Decorridos uns dez minutos, passei, novamente, por aqueles dois sentinelas, que pareciam dois soldados ingleses.

Estava, novamente, a meio caminho quando reapareceu a figura do deputado. Só que, desta vez, consegui me safar, escondendo-me numa coluna.

Entrei num corredor e disse a uma moça que encontrei na primeira porta com a qual me deparei:

– Quero falar com o governador.

– Pois não. Quem devo anunciar?

Diga que é um filho do ex-deputado João Cavalcanti.

Em pouco tempo, estava eu diante de Amaury Vasconcelos, então chefe da Casa Civil no governo Ernani Sátyro.

– Sou filho do ex-deputado João Cavalcanti e quero falar com o governador.

– Oxente! Mas você não é filho de tonha não (referia-se à minha tia Toinha, mulher do meu tio Joãozinho, o que fora deputado estadual). Explique as coisas direito, menino! Sou de dentro da casa de Tonha e nunca vi você lá.

(E agora? Fora pego “com a mão na massa”).

O raciocínio foi rápido:

– Olha, o senhor veja bem. Não sou filho natural de Joãozinho. Na verdade, sou filho de Zé Trindade; filho de Cecília irmã dele, de Piancó; mas fui criado em Campina, por ele.

– É, mas estranho que nunca o tenha visto por lá. De qualquer forma, vou botar você pra falar com o governador; Ernani deve conhecer seu pai.

Para minha felicidade, o chefe da Casa Civil engolira a mentira e eu iria falar com o governador.

– O que o traz aqui, amigo velho?

– Dr. Ernani: antes eu queria explicar que não sou filho de Joãozinho Cavalcanti, mas de Zé Trindade, de Piancó. É que fui criado na casa de tio Joãozinho.

– O que, amigo velho? Você é filho de Zé Trindade? Por que não disse logo? Devo muito a Zé Trindade; foi o maior e mais honesto cabo eleitoral que já conheci; me arranjou muito voto no Vale do Piancó. O que o amigo velho ordena?

– Quero um emprego; estou passando necessidade.

– Emprego não posso dar, porque a legislação não permite; faltam apenas três meses para a eleição. Peça outra coisa.

– Sabe o que é, Dr. Ernani; é que só um emprego resolveria meu problema e da minha mãe.

O governador pensou por algum tempo e decidiu:

– É, não posso faltar a um filho de Zé Trindade… O amigo velho estuda?

– Estudo. Faço a sétima série.

Pois vou dar ao amigo uma bolsa de estudos da loteria estadual. Vá agora lá, com esse bilhete; apresente a fulano.

Recebi o bilhete, mas não acreditei muito. Era só um rabisco. Esperava um documento batido a máquina. De qualquer forma, não custava ir à loteria, embora tivesse a impressão de que fora enganado.

Lá na loteria, as coisas foram mais rápidas do que eu pensava, o que aumentou minhas suspeitas de que tudo não passara de uma farsa.

Qual o quê. Um mês depois estava eu recebendo um salário mínimo, dinheiro que repassava à minha mãe, para ajudar no sustento da casa. Passei dois anos recebendo a quantia, que me sustentou e ainda possibilitou a abertura da primeira poupança, na Própria, Caderneta de Poupança, cujo primeiro cofrinho guardei, por muito tempo, como lembrança.

Ao lembrar esse episódio, tenho-o como prova da gratidão e da sinceridade dos sertanejos.

Um dia, votei em Múcio, sem ele saber, por causa de Ernani. Gratidão gera gratidão.

Há colunas de mármore e outras de caracteres.

(Publicada, originalmente, no extinto jornal O Norte, em 08 de abril de 2000).

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