Moeda: Clima: Marés:
Início Colunas
Professor Trindade

Aquele senhor não tinha na vida a quem se dedicar. Quarenta anos de uma existência amarga e solitária, entre as recordações de um passado sem qualquer amor. Quando jovem, foram muitas as oportunidades que lhe apareceram, mas deixou-as passar todas, não por gosto ou prepotência, mas por uma timidez que beirava a neurose.

Aquele senhor não era feio. Os cabelos grisalhos ainda chamavam a atenção de alguns olhares femininos: às vezes até de mocinhas de 18 anos.

Mas aquele senhor tinha uma solidão inexplicável; uma insatisfação que nem mesmo um recente caso de amor com uma garota muito mais jovem havia curado.

Justamente pra aplacar um pouco aquela solidão de uma terça-feira de carnaval, é que foi para ali, para a avenida, ver o desfile.

Na avenida quase vazia, se comparada aos carnavais de outras capitais, aquele senhor sentou-se a uma mesa – como sempre sozinho – e começou a observar quem passava. Seu olhar se dirigia às passistas de Escolas que, aguardando o desfile, passavam por lá, entre risos e apreensão.

Até que ela passou. Uma garota que não era exatamente extraordinária, mas enlouqueceu a vista e o coração do senhor.  Nova (aparentava uns 18 anos), cabelos um pouco encaracolados e um corpo magrinho, mas “no lugar”. Claro que passaram outras de corpos mais avantajados; algumas até usavam fio dental. Ela não. O que tinha mesmo era a beleza natural, a coisa que aquele senhor mais admirava numa mulher. Apesar de um pouco arrebitada, tinha um jeitinho meigo, de desprotegida. O corpo, que não era perfeito, apresentava uma barriguinha. Começaram, então, os olhares furtivos e os passeios dela na Avenida, justamente defronte da mesa daquele senhor. O problema é que ela era desejada por quase todos os homens na Avenida, metida naquelas vestes de passista.

Com a cabeça cheia de complexos, aquele senhor começou a imaginar o que poderia querer com eleuma garota tão jovem, se tantos garotões estavam, também, cortejando-a.

A um canto próximo, havia um grupo de batuqueiros da mesma Escola, esquentando os tambores e ensaiando o samba-enredo. Aquele senhor olhava, com os olhos brilhosos, algum batuqueiro que pudesse se aproximar dele e, a partir do batuqueiro, chegar até à garota.

Todos se chegavam, menos ela. Passava pra cima e pra baixo com uma colega, apontava e ria para aquele senhor, que não acreditava no que estava vendo. Houve um momento em que ela se aproximou e pediu um cigarro a um dos batuqueiros, não sem olhar para aquele senhor, que ainda fez um gesto de chamar o garçom e pedir uma carteira de Carlton, para oferecer à garota. Demorou, porém, no gesto e ela saiu, desdenhosa, após entregar o blusão a um tarolista que a beijou e passou, novamente, a rufar o tarol.

Aí aquele senhor não se controlou:

– Escute, aquela garota que entregou o blusão é namorada do tarolista?

– Que nada, aqui todo mundo é amigo. Ninguém namora ninguém; o que existe é uma grande amizade.

Aquele senhor, então, confuso e envergonhado, pensava por que estava ali; por que não tinha um lar para ir, ou não ia para outros lugares. Se havia tanta mulher no mundo, por que aquela paixão tão repentina? Por que se entregar a uma meninazinha que não sabia de onde viera e possivelmente após o desfile iria desaparecer para não mais voltar?

Aquele senhor era muito romântico e eterno adolescente. Recebia sempre a zombaria dos amigos, que o chamavam de débil, tolo, eterno sonhador; chamavam-no de “poeta”, na acepção mais pejorativa do termo.

Mas aquele senhor teimava em alimentar paixões; seu grande sonho era ver seu coração incendiado por uma paixão maluca que o fizesse subverter toda a ordem da sociedade.

Resolveu, finalmente, depois de um número incontável de doses, partir para a garotinha e jogar o seu amor; se desse certo, tudo bem; se não, já estava acostumado à solidão mesmo.

Na Avenida, a Escola pegava fogo. Por mais que olhasse, não encontrava sua bela, tal a emoção. Era estranho: encontrara a ala dela, a colega, mas ela não. Caminhava mais e mais para a frente, no ritmo da Escola, perguntando-se se não estaria maluco.

Até que achou. No final do desfile da Escola, final da Avenida. Ela, cansada e sozinha, estava sentada no asfalto, indiferente à multidão que passava.

Então aquele senhor se aproximou, com o medo e timidez que o caracterizavam:

– Parabéns! Você estava linda. Como é seu nome?

A menina fez uma cara de espanto, virou o rosto e empurrou aquele senhor, provocando risos nos presentes.

(Crônica originalmente publicada no jornal O Norte, em 10 de fevereiro de 1991).

publicidade
publicidade
© Copyright 2024. Portal Correio. Todos os direitos reservados.