Nunca tive sorte com carros.
Fui atropelado pelo meu próprio veículo*, quando tinha o primeiro carro: uma Brasília amarela, cujo nome (dado pelo dono anterior) era Margarida. Numa ladeira sem saída (ladeira da Dom Vital), no Róger, já no fim dela (não sei bem se ali é o fim ou o começo), o carro deu problema. Era na parte de baixo do declive. Desci do carro, tentei, inutilmente, empurrá-lo, quando, de repente, ele veio para cima de mim: o freio de mão cedera. Livrei o corpo, mas a bicha quase esmagava-me a coxa direita. Muitos dias de fisioterapia, saudade minha e da parte de meus alunos do CPU (o famoso, da Praça da Independência), por um mês. Ainda hoje, em dias frios, a perna direita dói. E olhe que foi em 1980, na época da Festa das Neves.
Troquei Margarida, em 1982, por um Chevette zero (Margarida, apanhei usada). Num cochilo, na “Curva do Cajá”, o carro virou e não ficou nada dele. Imprestável. Não tinha seguro. Prejuízo total.
Nesse acidente, houve dados interessantes e engraçados:
Eu saíra da boate “Charriot” (Campina Grande). Nessa época, dava aula em seis colégios, incluindo o Dimensão, de Campina Grande. Para vocês terem uma ideia, eram 17 aulas por dia. Na cidade citada, lecionava na sexta, à noite, e no sábado, pela manhã. Apesar de estar numa boate, não bebi; justamente porque inventei de voltar para João Pessoa, à meia-noite, para, no outro dia, retornar à “Rainha da Borborema”. Saudade da minha mãe e de minha noiva. Coisa de louco. Os colegas tentaram me dissuadir da ideia, mas finquei pé e vim.
Logo na saída da cidade, o sono bateu. Insisti com ele. Os olhos pesavam; dava cochilos, mas teimava.
De repente, “uma luz no fim do túnel”: as luzes do Cajá. (“Oba, tô perto; pensei: do Cajá para João Pessoa é um pulo”).
Na saída do Cajá, os olhos se fecharam, de vez.
Comecei a sonhar. Sonhei que estava disputando uma corrida de automobilismo. Devo ter, é lógico, empurrado o pé no acelerador até o final.
Barulho de carro que roda na pista; de freio. Acordo dentro do mato. Tento sair do carro. A porta, parcialmente enterrada, emperra. Um primo meu, que também dava aula no mesmo cursinho e viera de carona, pergunta o que foi.
Com muito esforço e muito chute, consigo abrir a porta e vou para a beira da estrada. O vento frio lembra-me que existo.
De repente, pensei em observar se estava ferido. Passo a mão por trás da cabeça, do meio dela até à nuca, e percebo que ela está bastante molhada de sangue. Começo a gritar pelo meu companheiro, desesperado:
– Vou morrer… Vou morrer…
Veio-me a ideia de que pior do que morrer é perder a memória. Começo a gritar:
– Perdi a memória… Perdi a memória…
Resolvo, então, fazer um teste comigo. Pergunto-me:
– Em que ano e com que obra se iniciou o Realismo no Brasil? (Naquela época, o ensino da
Literatura era pura decoreba).
E respondo a mim mesmo:
– Em 1881, com a publicação da obra “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.
Exulto:
– Viva!… Viva!… Não perdi a memória!…
Lembro-me de que preciso de socorro.
Vou bem à beira da pista; os carros passam, “voando”. Ninguém para.
De repente, uma boa alma aparece. Um ônibus da Patoense encosta; os passageiros descem, alarmados. Escuto um dizer para outro:
– Será que morreu alguém?
O motorista, educadíssimo, a quem até hoje sou grato, pergunta:
– E aí, o que houve?
– Meu carro saiu da pista.
– Saiu da pista? Seu carro capotou várias vezes; tá acabado. Não sei como você escapou. Tem mais alguém no veículo?
– Sim; um primo.
O ônibus não iria entrar por João Pessoa, já que aquela linha: Patos-Recife (ainda hoje existe) não permite que entre aqui.
O motorista pediu licença e a compreensão dos passageiros; conseguiu liberação na Polícia Rodoviária Federal, a quem deu conta do acidente, e nos deixou, eu e meu primo, na rodoviária de João Pessoa.
Acredito que alguém, no bar, em Campina, colocou um sonífero na minha coca-cola. Desconfio de um colega que tinha um ciúme danado de mim com a esposa dele: colocou na cabeça que havia algo entre mim e ela.
(*O pleonasmo vicioso foi inevitável).