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Edilson Pereira Nobre Júnior

É inconteste a versatilidade com a qual Machado de Assis pôde captar uma visão da sociedade brasileira, fazendo da realidade que o circundava não somente o retrato do presente, mas sobretudo uma pintura para indicar o futuro. Ao definir a geometria dos temas que abordara, soube mostrar muito além dos seus encantos secretos, construindo do imaginário os traços reais de uma sociedade.

Provas disso permeiam os seus romances, as suas crônicas e os seus contos, tal como se pode ver em Esaú e Jacó. No seu Capítulo XLIX, o Conselheiro Aires, experiente diplomata, cujos pensamentos e palavras possuíam subsolos, recebe o velho Custódio, dono de uma confeitaria na Rua do Ouvidor (Confeitaria do Império), o qual lhe veio pedir um conselho, mais precisamente se, diante dos reclamos da freguesia, deveria mesmo encomendar uma nova tabuleta, pois o pintor da Rua da Assembleia lhe disse que a madeira da atual estava rachada e comida de bichos, não aguentando tinta. Portanto, somente uma nova. Avarento, o confeiteiro confidenciou ao Conselheiro que não tivera outra atitude senão sucumbir à imposição do pintor, o qual insistiu em dizer que era um artista e não faria obra que viesse logo estragar. O que o deixava bastante triste é que ainda tivera de adiantar o pagamento, mesmo sem a oportunidade de saber se o trabalho ficaria bom.

Mas o pior estava por vir. Nos Capítulos LXII e LXIII, o Conselheiro é interrompido no ritual tranquilo que empregava na arte de saborear um bom charuto após o almoço, justamente por Custódio. Aflito, este viera relatar que, ao acordar, soubera de notícias que falavam da proclamação da República, instante no qual muito provavelmente já se encontrava pintada a placa com a palavra Império, com uma tintura viva e bonita. Temia por represálias e, por isso, pedia ao Conselheiro uma ideia para que pudesse sair do embaraço. A primeira que veio à mente de Aires foi a de pôr a inscrição “Confeitaria da República”. Além do revés de haver de realizar um outro pagamento, pois assim exigia o pintor, Custódio recusou, uma vez poderia, em um ou dois meses, haver uma reviravolta e a monarquia ser restaurada. Aí o Conselheiro propôs “Confeitaria do Governo”, denominação que também não obteve a tranquilidade do confeiteiro, pois, segundo dissera, todo governo não deixa de ter uma oposição e, quando os seguidores desta avistarem a tabuleta, poderiam querer quebrá-la. O importante era obter o respeito de todos.

Vieram outras tentativas, sem sucesso, até que Aires propôs “Confeitaria do Custódio”, já que muita gente conhecia o estabelecimento por essa designação. Quanto à despesa, decorrente da troca de uma palavra por outra (Império por Custódio), ponderou o Conselheiro que as revoluções sempre trazem despesas.

O Custódio, cônscio de que já incomodava o Conselheiro, agradeceu, dizendo que talvez fosse conveniente ainda esperar um ou dois dias, para ver até onde parariam as modas, e, somente após, tomar uma decisão. Encerrada, pois, a crise da tabuleta. É de se perceber quão atual o retrato de nossa política, a demostrar que os clássicos são livros que não dispensam uma releitura e que esta, de preferência, desenvolva-se perante um leitor já maduro.

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