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Edilson Pereira Nobre Júnior

Numa das minhas andanças pela saudosa Livraria Cultura do Paço Alfândega (Recife Antigo), o que fazia como um complemento obrigatório do almoço, um livro me despertou atenção, imerso nas prateleiras dedicadas aos autores brasileiros. A combinação perfeita entre a literatura e a música, com aquela se manifestando pela crônica, e o seu autor, tornou irresistível a tentação de adquiri-lo, bem assim a dasua leitura imediata.

Tratava-se do livro “Sejamos todos musicais”, integrado por vinte e duas crônicas escritas por Mário de Andrade no período de agosto de 1938 a junho de 1940 e publicadas na Revista do Brasil, então sob a direção do historiador Otávio Tarquínio, ao assinar a coluna “Crônica Musical”. Organizadas meticulosamente por Francini Venâncio de Oliveira que, além de uma introdução, foi responsável por substanciosas e reveladoras novas de rodapé, restaram em forma de livro pela Editora Alameda.

São justamente essas notas de pé de página que, sob a maneira de esconderijos, guardam formidáveis tesouros. Aqui o organizador – que, na sua introdução, já avisara que se estava diante de um Mário longínquo “do intelectual vanguardista que provocara seus leitores denominando-se “lobo sem alcateia” (p. 19) – brinda-nos com revelações que, para mim, foram muito além da necessidade de contextualizar o leitor sobre a conjuntura que inspirara o escritor no seu ato criativo.

Uma delas está na crônica “Pois no passado mês de março, deu-se um acontecimento” (pp. 97-102), escrita a propósito de concurso que consagrou Luís Heitor Correia de Azevedo para a cátedra de Folclore Nacional da Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro. À nota de rodapé 3, o organizador relata que, nos anos de 1924 e 1925, Mário, missivista compulsivo, revelara em carta ao amigo Luís da Câmara Cascudo a enorme “fome” que sentia pelas coisas do Norte, havendo, quando de seu famoso périplo no final de 1928 e início de 1929, feito a recolha, no Rio Grande do Norte, de cocos, fandangos, toadas, emboladas, melodias do boi, desafios e canções sertanejas.

Ainda no mesmo texto, à feição de concluir, há narrativa do próprio Mário da passagem pelo engenho Bom Jardim, de Antônio Bento de Araújo Lima, onde se deparou com o que denominou de “uma melodia em que emitia um som aberrante dos que conhecemos em nossa educação europeia” (p. 101), entoada por Vilemão da Trindade.O mais interessante é que, após ouvi-la muitas vezes, o viajante ousou reproduzi-la no piano e cada vez que a executava o seu pobre colaborador tornava a dizer que não era assim.

Isso ocorreu até que, persistindo o impasse diante de uma irritação fingida do intelectual, dizendo que o piano não tinha o som que ele cantava, Vilemão, “muito envergonhado por não concordar com o ‘seu dotô’, hesitou, mexeu-se, mas acabou afirmando mesmo que ele então não sabia como era, mas a frase não era assim como eu reproduzia no piano. Achei o caso tão admirável que chamei o meu amigo Antônio Bento de Araújo Lima, para que autenticasse o meu achado” (pp. 101-102).

À medida que tece sem cessar o fio da identidade de um povo, a cultura nunca deixa de surpreender.  


*Edilson Pereira Nobre Júnior é magistrado e professor.

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