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Edilson Pereira Nobre Júnior

Em posfácio ao livro “A viagem do elefante”[1], de José Saramago, Alberto da Costa e Silva afirma que o grande teste do romancista e do contista – e do cronista, acrescento – é o de deixar nos leitores personagens a quem poderíamos estender ou recusar a mão e que permanecem em nossa lembrança como algo vivo.

Por isso, escolhi Marcovaldo, não o protagonista de “As estações da cidade” [2], histórias com as quais Ítalo Calvino retratou à fidelidade o dia-a-dia de um trabalhador e sua família, mas um brasileiro anônimo, que vem a se inserir no mundo com um espírito desbravador.

Pois bem. Terminando o período crudelíssimo da pandemia, Marcovaldo pôde enfim retornar à sua predileção como um voyageur. Não lhe faltou um pouco de insegurança. Por alguns instantes, parecia que volviam fortes as inquietações da primeira vez que ultrapassara o Atlântico.

Mesmo assim, sem trancos e barrancos, desembarcou em Montréal numa manhã com boa dosagem de frio. Confirmando que um dos melhores critérios para a escolha de um hotel é o da localização, foi-lhe possível imediatamente iniciar o seu périplo, iniciando-o com uma visita à Basílica de Notre Dame.

Depois, percorreu a Rue Saint-Paul e, não resistindo à gula salutar, pecado transformado em venial, foi com sua musa a um de seus maravilhosos restaurantes, encerrando la journée com um supino jantar no Vieux-Port. À saída, num esbanjar de romantismo, encontrou vários grupos de jovens rumando em direção a um animado Halloween.

No dia seguinte, não sucumbindo, como um bom viajante, à sedução pela idolatria das compras, Marcovaldo atravessou rapidamente a Rue Sainte-Catherine, passando pela Rue Crescent, com os seus maravilhosos pubs, para enfim poder visitar o espetacular acervo do Musée des Beaux-Arts.   

Ali, durante quase cinco horas, as quais se recusavam a passar, e que não se mostravam bastantes diante dos inúmeros detalhes dos vários gêneros artísticos, pôde perceber que a arte é universal e que o papel de um museu é o de promover o diálogo do visitante com as suas coleções diante de uma abordagem temática, trans-histórica e intercultural. 

Terminada a visitação, deparou-se, à frente do edifício, com uma manifestação da comunidade iraniana em defesa dos direitos da mulher, especialmente em face do assassinato, assaz brutal, de Mahsa Amini, de 22 anos, pela Patrulha da Orientação, pelo simples fato de não usar o hijab corretamente.

Enfim, percebeu Marcovaldo que a humanidade tem salvação.  


[1] 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pp. 257-258.

[2] 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. Tradução de Nilson Moulin.


Edilson Pereira Nobre Júnior é o ocupante da Cadeira nº 36 da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras.  

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