No dia 25 de novembro de 2023 (um sábado), em meio a um sol causticante e satisfação incontida, participei, juntamente com outros amantes da literatura, ao lado do professor e Acadêmico Mílton Marques Jr., idealizador, de uma caminhada pelas ruas em que o poeta Augusto dos Anjos morou aqui em João Pessoa, então Parahyba; mais demorada e atenciosamente, pela rua Duque de Caxias, na época Rua Direita, onde o poeta morou, foi aluno e professor no Liceu Paraibano e casou-se com Esther Fialho, na antiga Capela de São Gonçalo, que se transformou na Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, tendo sido demolida em 1929.
O cenário é desolador e revoltante!
Calçadas com obstáculos, carros de um lado e de outro – a rua é estreita, guardando, nesse particular, a arquitetura da época do poeta – camelôs, gente batendo na gente… Enfim, do poeta só os passos imaginários e poéticos na cabeça da gente e na oratória eficaz e perfeita de Mílton, que não à toa fez – e faz – no ofício a que devota total encantamento: o magistério. Mílton, além do grande conhecedor da cultura que é,do Acadêmico culto e erudito de cujo valor a Paraíba se orgulha, é – como ele mesmo disse no discurso de posse da Academia – sempre e orgulhosamente o professor.
Em verdade, a caminhada fez parte de um evento subdividido em dois: no sábado, o conhecimento das moradas de Augusto dos Anjos e, na segunda, à noite, o lançamento do livro “Ei-lo pulando de uma casa para outra nas ruas da Capital (Um Roteiro de Augusto dos Anjos, nas Ruas da Paraíba)”na Academia Paraibana de Letras, da qual o autor é membro.
O livro tem um estilo que traz a marca peculiar de Mílton: linguagem simples, acessível, límpida, didática. E a leitura é feita de imediato, simplesmente porque nãoconseguimos parar a cada capítulo terminado: um ímã inerente às boas obras que nos prendem, de forma tal que até mesmo a breve pausa para o cafezinho nos torna irrequietos para voltarmos a ela.
A Mílton não escapou, evidentemente, o descaso (a que já nos referimos) a que está relegada a, na época de Augusto, Rua Direita, e hoje Duque de Caxias:
“Degradação, lixo, entulhos, calçadas obstruídas, carros estacionados nos dois lados da rua, estreita para os tempos atuais; um tesouro arquitetônico abandonado, deixado ao sabor da voragem do tempo, revelando o desleixo, o descaso, nas ruínas que se multiplicam ao longo da via. Esta é a imagem real e triste do que hoje é a Rua Duque de Caxias, antiga Rua Direita, antiga Rua São Gonçalo, vista em rápido curso, do seu início ao seu término, tirando algumas fotos, com o intuito de tentar identificar os lugares onde teria morado o poeta Augusto dos Anjos, entre os anos de 1908 e 1910, quando viveu na Paraíba, nome da atual João Pessoa. Verifiquei tratar-se de uma tarefa que beira a impossibilidade: há casas sem número, a numeração não segue, necessariamente, uma sequência, e, com certeza, a lógica da numeração da época de Augusto dos Anjos não é a mesma da época atual. Vieram-me, de súbito, à mente os versos de ‘Os Doentes’:
‘Contra a arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos,
Decompondo-se desde os alicerces!’”
Momento sublime da narrativaéesteem que o autor transcreve um trecho do único poema em que Augustose refere, explicitamente,aendereço na Capital, em que morou entre 1908 e 1910, antes de se transferir, definitivamente, para O Rio de Janeiro:
“Número centro e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liquefeita”
(“Noite de um Visionário”).
Concordo com Hildeberto Barbosa Filho, quando disse, em poema dirigido a Mílton, que poeta não tem casa:
“(…) Prefiro pensar
Que a casa de Augusto
Nunca existiu.
(Ah! O abstrato das saudades!)
Nunca existiu a casa
De Augusto.
Nem na capital, nem no Rio,
Nem em Leopoldina.
Augusto não carece
De casa.
Os poetas não têm casa.”
(“A Casa de Augusto”).
Mas, saindo do mundo poético, é preciso valorizar e sempre relembrar os passos do homem – invólucro e condutor do poeta – e os lugares onde morou e por onde passou.
Momento de poesia
“Solitário
Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!
Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta…
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!
Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
– Velho caixão a carregar destroços –
Levando apenas na tumba carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!”
(Augusto dos Anjos)