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Edilson Pereira Nobre Júnior

O desvio de poder ou de finalidade (détournement de pouvoir) é reconhecido atualmente como um dos mais graves e assíduos vícios de que se ressente o exercício do poder, descortinando o lado egoístico da autoridade, de sorte a que, dissimulando uma postura aparentemente afinada à lei, aquela vem a satisfazer os seus interesses pessoais, mediante um agir sem nenhuma conexão com o interesse público.

Considerando-se que os comportamentos com relevo jurídico são antes – e bem antes mesmo – o retrato do que acontece na sociedade, e que esta busca disciplinar, percebe-se que a literatura, à vanguarda do Estado de Direito, brindou-nos com exemplos do instituto que somente veio a ser delineado juridicamente pelas decisões do Conselho de Estado francês da segunda metade do século XIX.

E, na narrativa dos escritores, um bom exemplo do desvio de finalidade constou de Saramago, com os seus inexcedíveis látegos de ironia. De fato, lê-se em “Memorial do Convento” que El-Rey D. João V, além de pródigo na gastança do ouro do Brasil, era dado a conquistas românticas, inclinando-se em predileções pelas freiras dos intermináveis mosteiros de Portugal.

E, como se não bastasse o abuso na licenciosidade, sua Majestade, visando pôr cobro a possíveis escândalos provocados por nobres e não nobres que, frequentando as esposas do Senhor, deixavam-nas grávidas, emitiu ordem para que monjas somente pudessem falar nos conventos a seus pais, filhos, irmãos e parentes até o segundo grau. A proibição, óbvia e logicamente, não se aplicava ao seu emissor.

A autoritária – e desigual – determinação foi recebida com extrema indignação pelas freiras de Santa Mônica. Estas, diante da inexistência de uma justiça administrativa, o que fazia predominar a imunidade da Coroa, amotinaram-se. O resultado foi que trezentas mulheres, catolicamente enfurecidas, forçaram as portas do monastério, e, conduzindo violentamente a madre superiora, saíram em procissão pelas ruas sem prumo nem rumo.

A instâncias do corregedor do crime, El-Rey, refletindo não ser infalível, revogou a ordem e, assim, tudo retornou à moralidade de antes, tal qual no Quartel General de Abrantes, com a volta triunfal das freiras às suas celas, entoando os seus cantos, além de terem merecido a absolvição do provincial.

Revolucionário, o estremecimento das paredes conventuais trouxe, à feição de defesa da doce carícia, uma aura de resistência ao abuso do poder.

P.S.: Para que não restasse prejudicada a curiosidade do leitor quanto à leitura do romance de Saramago, limitei-me auma descrição atomizada,buscando, assim, preservar aexploração da imensidão imaginativa do escritor.

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