Diariamente, leio poesia. Costumo ler vários livros (de diversos gêneros), simultaneamente; mas, quaisquer que esteja lendo, um é de poesia.
Gosto de ler poetas russos, mas confesso ter lido pouco Joseph Brodsky. Foi por meio da coluna de Mario Sergio Conti, de sábado, 31 de agosto de 2024, na “Folha de São
Paulo”, que reencontrei um dos melhores poemas que li, nos últimos tempos: “Canção de Boas Vindas”, do poeta citado.
Ei-lo:
Canção de Boas-Vindas
(Joseph Brodsky)
Eis sua família, mãe, pai e avós.
Bem-vindo a seu baú de ossos.
Por que perdeu a voz?
Eis aí seu corpo e aqui comida.
Umas ideias, até bebida.
Bem-vindo à vida.
Eis sua história nova em folha.
Vá em frente, não há escolha.
Bem-vindo à sua bolha.
Eis seu salário e a inadimplência.
O dinheiro é a quinta-essência.
Bem-vindo à sua ausência.
Eis a colmeia, o enxame, multidões.
Bem-vindo a tantas aglomerações.
Você é um em cinco bilhões.
Bem-vindo à tela onde você some.
A democracia deletou seu nome.
Bem-vindo à falta renome.
Bem-vindo ao casamento que cometeu.
E agora a seu divórcio no apogeu.
Bem-vindo, você se fodeu.
Eis você com a lâmina junto à jugular.
Bem-vindo, autoterrorista singular,
A seu Oriente Médio particular.
Apesar do polvo no sonho recorrente,
Eis você no espelho, sorridente.
É seu esse grito de demente?
Eis na TV o debate sobre a crise.
Seu candidato diz uma tolice.
Bem-vindo seja à chatice.
Eis seu cachorro passando apressado
Para fazer xixi na sala, que folgado.
Bem-vindo à sua cara de coitado.
Eis o sabiá que gorjeia de má vontade.
Sua lágrima cai no chá pela metade.
Bem-vindo à vida que se evade.
Eis o raio-X com o nódulo no pulmão.
Bem-vindo o remédio para pressão.
Eis o seu detonado coração.
Bem-vindo à cova que o veste bem,
No cemitério que lhe convém.
É o fim para você também.
Eis seu testamento e ninguém o lê.
No seu enterro, rezar quem há de?
Bem-vinda a vida sem você.
Eis as estrelas que não estão nem aí
Para você ter ou não estado aqui.
Meu velho, é isso aí.
Da sua vida não restou nem o bagaço.
Não se vê pegadas de seus passos.
Bem-vindo, digamos, ao espaço.
Bem-vinda sua morte bem-sucedida.
Se nem Saturno lamenta a sua ida,
Eis uma canção de despedida
Nunca ninguém cantou tão bem nossa trajetória, do nascimento à morte. O “eu-lírico” está se referindo à vida dele, mas bem que poderia ser a de cada um de nós. É isso que caracteriza a grande poesia: um canto particular, que se torna universal.