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Professor Trindade

            Fui um menino diferente dos outros. Enquanto os demais viviam na rua jogando bola e fazendo traquinagens, eu vivia em casa, na minha soledade.

            A princípio, quando muito pequeno, brincava com carocinhos de pinha, que eram os bois da minha fazenda, e fazia viagens imaginárias com meu onibuzinho vermelho da Flexa Carioca, que eu imaginava ser o ônibus da Ipalma que fazia a linha João Pessoa-Conceição.

            Um pouquinho maior, já após cantar no “Cine Eldorado”, passei a tocar minha bateria (construída, é claro!por mim): o caixa era uma gaveta da penteadeira; o tantan, um caixa grande de biscoitos sortidos; o prato, uma tampa de panela. Só não consegui fazer o chimbal, porque este exigiria duas tampas de panela e um pedal para juntar as duas, na hora do ritmo. Mesmo assim, ainda tentei com um flandre (cujo som era mais suave; mais fino), mas não deu certo. Não havia, evidentemente, bombão. Mesmo porque a maioria dos conjuntos da época (1966, 1967) não dispunha de bombão.

            Foi então que descobri o “quartinho de trás”, que ficava no muro lá de casa (no interior, na época da minha infância, a parte traseira da casa não era chamada quintal; o quintal era a parte da frente; que minha casa não tinha).

            Intrigava-me bastante aquele quartinho, lá no muro, sempre fechado.

            Certa vez, perguntei à minha mãe:

            – Mamãe, por que esse quartinho vive sempre fechado?

            A resposta foi o silêncio.

            Um dia, descobri o esconderijo onde ficava a chave do quarto e, com um medo enorme, o abri.

            Para minha surpresa, o quarto era tomado de livro. Livros de toda qualidade, espalhados pelo chão, em montes; quase não dava para a gente caminhar. A um canto, um banjo, que imaginei ser do meu irmão mais velho, que há tempos morava fora (e, realmente, era). Bem próximo, uma caranguejeira enorme, que me meteu medo, mas o medo não foi maior que minha curiosidade peloslivros.

            Procurando coisa “proibida”, diante do mistério que se fazia em relação àquele quarto, encontrei o primeiro título:

            “Você quer casar?”

            Sempre fui meio precoce para as curiosidadesdo sexo. Abri, avidamente, o livro, achando que iria ter alguma coisa ensinando, por exemplo, como seria a “primeira noite”. Mas nada disso! O livro falava sobre etiqueta: a maneira de como deveriam se comportar homem e mulher… Sobre a “primeira noite”, era lacônico.Vi que tinha a assinatura de uma das minhas irmãs; certamente ela lera nas proximidades do casamento dela.

            Mas aí vem a razão de toda essa crônica: o motivo maior pelo qual passei a adorar leitura – até hoje –; principalmente, poesia:

            Deparei-me com a “Antologia Nacional” de Carlos de Laet, e, por força do destino, abri justamente na página onde havia o poema “Ismália”, de Alphonsus de Guimaraens.

            Apesar da tenra idade (eu tinha 7 anos), apaixonei-me pelo poema: pelo ritmo cadenciado, pelas imagens tristes, porém belas. Compreendi logo que se tratava de um suicídio; sempre fui fascinado pelo suicídio. Li e reli, com encanto; sobretudo, as duas seguintes estrofes:

            “Quando Ismália enlouqueceu

              Pôs-se na torre a sonhar…

              Viu uma lua no céu

              Viu uma lua no mar.”

                           (…)

              E as asas que deus lhe deu

              Ruflaram de par em par

            Sua alma subiu ao céu

              Seu corpo desceu ao mar.”

            Ainda embevecido com a leitura de “Ismália”, pousei os olhos num livro queamo e do qual me chamou a atenção um conto, que leio, ainda hoje, quase todos os dias, e, toda vez, choro, como o fiz naquele dia: “O Rouxinol e a Rosa”. O nome do livro: “O Príncipe Feliz” – livro de contos de Oscar Wilde.

            Esse quartinho me traz muitas recordações…

            Foi no batente próximo a ele que chorei quando li, num gibizinho da Disney, sobre a morte de Walt Disney; chorei, que solucei.Foi nesse batente que chorei pelo fato de minha mãe ir me dar uma surra, porque, num cimento ainda fresco de uma paredinha que fizemos para servir de escoamento da água do banheiro, coloquei o nome de Waldizia, minha primeira paixão (fui salvo por minha irmã Nenen; assim como também foi ela que me afagou as lágrimas no episódio da morte de Walt Disney). Se não me engano, os episódios aconteceram na mesma tarde.

            Não sei dizer como e nem por que, minha mãe resolveu deixar aquele quarto “para mim”. Passei a viver praticamente nele.

            A mim, ao caçula, quase tudo era permitido (menos jogar bola!). Resolvi, então, montar o “studio” (na época era pecado falar estúdio) de uma “rádio”.

            Meu quartinho era o ideal. “Montei”, então, minha “rádio”.

            O microfone era um saleiro, pendurado a um arame que, por sua vez, era pendurado ao telhado. Nas paredes, prateleiras exibindo disquinhos de papel, envoltos com embalagens transparentes de cigarros. Os disquinhos eram conseguidos, sobretudo, nas capas da revista “Contigo”, que traziam réplicas perfeitas dos LPs. e compactos lançados na época.

            Dei muito trabalho à minha mãe, com essa “rádio”. O quarto era empoeirado, cheio de livros, e havia, também, uma caranguejeira grande (aquela de que já falei linhas atrás), para quem eu olhava com muito medo, mas não ousava pedir ajuda a ninguém, sob pena de minha “rádio” ser desmontada.

            A minha “rádio” era “perfeita”. Apesar de ter apenas 8 anos, dividia a programação direitinho. A “rádio” tinha noticiários, programas de diskjóquei, programas de esporte e atendia a muitos ouvintes imaginários.

            Em época de campanha, o quartinho se transformava em comitê.

            Sempre fui democrático por natureza.

            Apesar de ser arenista fervoroso, por causa de minha mãe e do prefeito de Patos, na época, Zé Cavalcanti, no meu comitê eu pregava retrato de políticos do MDB e da ARENA (os dois únicos partidos que havia). Lá, na parte interna e externa, tinha retratos (de todo tamanho) de Judivan Cabral a Humberto Lucena. Lembro, com mais nitidez, dos retratos de Pedro Gondim, Antônio Mariz, Judivan Cabral, Teotônio Neto e Aluísio Campos.

            Que saudade do meu quartinho… Ele mora em mim. Que saudade do menino que não deixou de ser menino, apesar das agruras da vida.

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