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Professor Trindade

Estranho, inacreditável e incompreensível, numa época em que tanto se faz campanha contra o racismo e tanto se fala em ativismo, que não se leia uma linha sobre justamente aquele que é considerado o primeiro ativista negro da poesia brasileira: o poeta Solano Trindade.

Nascido em 24 de julho de 1908, no bairro de São José, em Recife-PE, era filho do sapateiro Manoel Abílio e da doméstica Emerenciana Quituteira. A miscigenação está já na descendência do autor: neto de negro e branca, pelo lado paterno; e negro e indígena, pelo materno, estudou no Liceu de Artes e Ofícios da capital pernambucana, tendo concluído o equivalente ao Ensino Médio atual.

Muito cedo, manteve contato com a cultura popular e o folclore, levado pelo pai, que, nos dias de folga, dançava Pastoril e Bumba-meu-boi nas ruas do Recife. O carnaval, o maracatu e o frevo fascinavam o poeta. A pedido da mãe, analfabeta, lia novelas, literatura de cordel e poesia romântica, que ambos apreciavam. Já adulto, casa-se, em 1935, com Maria Margarida – terapeuta ocupacional e coreógrafa – com quem teve quatro filhos.

A década de 1930, como se sabe, foi marcada pela ascensão do nazismo e do fascismo e Hitler, principalmente, iria disseminar a ideia de “raça superior”, o que, no caso do Brasil, acentua a discriminação racial existente desde a colonização.

Dá-se, então, nessa época, o fortalecimento da Imprensa Negra e a criação da Frente Negra Brasileira, que também se organiza em forma de partido político e fortalece a resistência dos afrodescendentes na luta pela obtenção da cidadania plena, a começar pelo direito à educação.

Nessa época, Solano Trindade participa em Recife do I Congresso Afro-brasileiro, organizado por Gilberto Freyre, que reúne dezenas de intelectuais voltados para a discussão da contribuição cultural africana em nosso país. Participa, também, do II Congresso Afro-brasileiro, realizado, posteriormente, em Salvador.

Em 1936, funda a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileira, com o poeta Ascenso Ferreira, o pintor Barros e o escritor José Vicente Lima. Tal órgão tinha como objetivo, dentre outros, promover a pesquisa da afrodescendência na cultura e na história; buscar a expressão afro-brasileira na literatura e nas artes em geral, promovendo a divulgação de intelectuais e artistas negros. 

Solano Trindade estreou na literatura, em 1936, com a publicação de Poemas Negros, título homônimo ao do livro de Jorge de Lima, também lançado naquele ano, que contém o famoso poema “Essa Nêga Fulô”.

Na década seguinte, o poeta passa a residir no Rio de Janeiro, onde se integra aos círculos literários e culturais e trava conhecimento com outros artistas afrodescendentes. Em 1944, vem o segundo livro: Poemas D’uma Vida Simples.  

Solano foi o fundador, ao lado da esposa, Margarida Trindade e do socólogo Edison Carneiro, em 1950, do Teatro Popular Brasileiro, na Baixada Fluminense, cujo elenco era formado por domésticas, operários e estudantes e tinha como projeto estético-ideológico “pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte”.

Em 1958, lança o terceiro livro: Seis Tempos de Poesia, publicado em São Paulo.

A partir dos anos 1960, o poeta passa a residir em Embu, na Região Metropolitana de São Paulo, e promove grande movimentação artística e cultural na cidade. Espetáculos sucedem-se, atraindo. Embu torna-se, mais tarde, “Embu das Artes” e vira atração turística.

Em 1961, publicao quarto livro, Cantares ao meu povo.

Doente e cansado, Solano Trindade deixa Embu para residir em São Paulo.

Morreu, como sói acontecer aos poetas, pobre e esquecido, numa clínica no Rio de Janeiro, em 1974, vítima de pneumonia.

Dois poemas de Solano:

Tem gente com fome

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiiii

Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Pisiuuuuuuuuu

(Cantares ao meu povo, 1961).

Sou negro
(A Dione Silva)

Sou Negro
meus avós foram queimados

pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs

Contaram-me que meus avós

vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor do engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu.

Depois meu avô brigou
como um danado nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu

o pau comeu
Não foi um pai João

humilde e manso.

Mesmo vovó

não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês

ela se destacou.

Na minh’alma ficou

o samba
o batuque

o bamboleio
e o desejo de libertação.

(Cantares ao meu povo, 1961).

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