Mais uma vez redescubro em você uma senhora de mim. Sim, mesmo com a loucura do dia a dia, mesmo com o barulho do nosso filho não nos deixando dormir e amar direito; mesmo com os afazeres a atrapalhar o nosso diálogo (há quanto tempo não dialogamos?), uso esse espaço para fazer uma declaração de amor.
Mas por que declaração pública de amor? O jornal não é apenas meu, mas de um monte de leitores que todo dia vêm para a nossa coluna esperando ler algo que lhes diga respeito; e não, particular. A pergunta é respondida com uma observação: todos amam e são muitos os homens que gostariam de ter um espaço para fazer uma declaração, num mundo tão carente de amor; e muitas mulheres gostariam de ter essa declaração pública.
Você mesma não reclamou que eu nunca falo de você, que na minha ficção ou nas minhas crônicas aparecem sempre “outras”, e não você?
Mas você aparece, sim! Aparece em forma de pensamento constante; em forma de angústia ou alegria; em forma de sonhos, nos meus desejos e indagações ao mundo.
Eu redescubro você hoje, exatamente porque fiz muitas indagações. Para aonde estão indo os meus sonhos, as minhas ilusões, a minha incoerência? Para as rugas, a solidão, o medo desesperado da velhice, que tenho.
Sabe por que quero você bem cuidada, com a barriga de menos, embora não cuide da minha? Porque sei que para você isso é fundamental; e não é para se mostrar para os outros, mas para si mesma. Foi difícil descobrir que você quando quer se aprontar é para me agradar, afinal para quem ama o ciúme é sempre inevitável.
Retrocedo na memória e percebo o quanto tivemos de obstáculos. Sua mãe me colocando para fora, batendo porta na minha cara, batendo boca no mundo e eu ali, maluco, gritando teu nome, derramando lágrimas no asfalto. O teu pai, pessoa boa, mas conivente, assistindo ao meu desespero, à minha angústia, à minha loucura, tentativa de agressão e coisa e tal.
Fui um louco que agredi; fui um louco que amei e amo; sou um louco que agride, que ama, que enlouquece e se enlouquece.
Olho um pouco para teu corpo; é claro que está mais flácido, como o meu já está mais velho; mas o que importa?
O mesmo encontro maluco naquela árvore, no meio da rua; as pessoas gritando, coléricas, contra o amor público, numa cidade provinciana. Lembra daquela velhinha que um dia nos parou para afirmar que tudo aquilo terminaria em casamento? Quisera que uma coincidência qualquer fizesse com que viesse um vento e percebesse que o amor aumentou.
Que coisa! E só agora, depois de tanto tempo, resolvi fazer uma crônica; um presente sem aniversário. Uma declaração de amor!…
(Originalmente publicada no jornal “O Momento”, em 31/10/1986).