Eu começava a crescer na carreira como professor de 2º grau (hoje, Ensino Médio) e cursinhos preparatórios, quando conheci Dalton Trevisan. Entenda-se o verbo conhecer, aí, como metonímia: conheci, mais detalhadamente, a obra do escritor.
O texto que estava usando em sala de aula, no saudoso colégio Pio XII, era “Uma Vela para Dario”. Eu não conhecia, criteriosamente, até então, a obra do grande escritor curitibano; falava dele na sala, mas, na época, não era muito comum destacar os contistas brasileiros contemporâneos, porque o ensino era voltado, obcecadamente, para o vestibular; e Dalton não era muito frequente nas questões dos vestibulares da Paraíba. O conto me deixou extasiado, de tão bem escrito. Assim que saí da aula, fui direto à livraria comprar todos os livros dele que houvesse à disposição.
O primeiro livro que li dele, “Meu Querido Assassino”, me tornou um fã entusiasta, a ponto de não mais perder um lançamento sequer.
Fiquei encantado com o erotismo cru, mas, ao mesmo tempo, delicado de Dalton. Era um misto de realidade dura, “na cara”, mas com um lirismo envolvente. Pode-se juntar, numa só obra, crueza, erotismo e lirismo? Com Dalton, podia.
Aliás, para aqueles que pensam que Trevisan só escrevia contos eróticos e duvidam do lirismo de que falo, convido a ler, ao final, o texto selecionado por mim.
Pois foi com tristeza que recebi a morte do “Vampiro de Curitiba”. Apesar de saber que o apelido “vampiro” provinha dos hábitos estanhos de Dalton (ele não dava entrevistas e nunca se deixava fotografar), nunca concordei com o apelido. No meu entendimento, este afastava os leitores mais jovens que, só mais tarde, começaram a “devorar” os livros dele.
Dalton Trevisan nos deixou nesta segunda-feira (9/12), aos 99 anos, e era, sem dúvida, um dos maiores contistas do país.
Alguns dados biobibliográficos
Dalton Jérson Trevisan nasceu em 14 de junho de 1925. Era filho de João Evaristo Trevisan e de Catarina Stocchero Trevisan.
Estreou com o livro “Sonata ao Luar”. No ano seguinte, publicaria “Sete Anos de Pastor”, definido por Sérgio Milliet como “a maior invenção expressiva, desde Clarice Lispector”. Trevisan viria, posteriormente, a renegar ambos os livros. É muito comum aos escritores ao chegar à maturidade literária desprezar os livros do começo da carreira, por considerá-los ruins e imaturos.
Formou-se em direito, pela Universidade Federal do Paraná, em 1947 e permaneceu filiado à Ordem dos Advogados do Brasil até 1964.
Em 1946, fundou a Revista Joaquim. No segundo número, a Joaquim publicou uma carta de Carlos Drummond de Andrade, que comemorava “as revistas de moços”. “Que delícia uma revista cuja redação é na rua Emiliano Perneta, 476, e que promete publicar em seu segundo número um artigo sob o título ‘Emiliano, poeta medíocre’!”.
Na coluna ao lado da carta de Drummond, a publicação trazia, efetivamente, o artigo em que Trevisan desconstruía Emiliano Perneta, o chamado príncipe dos poetas do Paraná, que em sua opinião teria produzido uma “versalhada farinhenta”, para ser “recitada nas sessões litero-musicais dos colégios em festa no dia da árvore”.
O jovem escritor também trocou correspondência com Pedro Nava, Antônio Callado e outros importantes nomes da literatura.
Em 21 edições, de 1946 a 1948, a publicação pôs Curitiba no circuito literário nacional e não deixou pedra sobre pedra na crítica ao Parnasianismo, que, segundo Trevisan, “em nome de santas tradições, amputou as mãos e furou os olhos dos jovens artistas”.
Somente em 1959, o contista voltaria a publicar em livro e já obteve um êxito grandioso: “Novelas Nada Exemplares” ganhou o prêmio Jabuti de Literatura. “O Vampiro de Curitiba” foi publicado seis anos depois.
Dalton Trevisan conquistou o Prêmio Jabuti por quatro vezes. Venceu em duas oportunidades o prêmio Portugal Telecom. Além desses, o APCA, o Machado de Assis e o prestigiado Camões, pelo conjunto da obra. Nunca compareceu a nenhuma das cerimônias de premiação.
Trevisan publicou até os 90 anos de idade, com uma regularidade admirável, e sempre vendeu bem, nunca sendo afetado pelas oscilações do mercado editorial.
Apesar da fama de ensimesmado, o escritor, ao que se sabe, nunca foi recluso. Segundo ele próprio, evitava os “holofotes” porque “só a obra interessa”. “O autor não vale o personagem. O conto é mais importante que o contista.”
Os textos do contista revelam uma busca obsessiva pela concisão extrema. “Para escrever o menor dos contos a vida inteira é curta. Nunca termino uma história. Cada vez que a releio, eu a reescrevo”, declarou, em 1965.
O grande escritor deixa um legado que influenciou e obra de muitos contistas brasileiros.
Acendamos uma vela inapagável e saudosa para Dalton!
TEXTO SELECIONADO
Apelo
Amanhã faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a verdade, não senti falta, bom chegar tarde, esquecido na conversa de esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os dias, Senhora, o leite primeira vez coalhou. A notícia de sua perda veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo da escada. Toda a casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo. Para não dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos. Uma hora da noite e eles se iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença a todas as aflições do dia, como a última luz na varanda.
E comecei a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero na salada − o meu jeito de querer bem. Acaso é saudade, Senhora? Às suas violetas, na janela, não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa, calço a meia furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora, conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora, por favor.
TREVISAN, Dalton. “Mistérios de Curitiba”. 5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.