E veio o anjo, inspirado pelo Altíssimo, falar aos filhos da terra: que fartes a tua boa de verdades, e somente da verdades, no dia da anunciação.
Filintus, 14:10
O dia, enfim, chegou. É hoje.
E nesse dia em que somente a verdade será professada compulsória e imperativamente de cada boca – seja homem ou mulher; criança ou idoso – se descobriu, afinal, que o Apocalipse não se instalaria nem por água nem por fogo.
Se o início foi o verbo, o fim seria o substantivo.
O juízo final veio com a verdade, nada mais que a verdade. E, ao redor do mundo, aconteceram situações como esta:
Mulher acorda o marido, já se arrumando para sair, e o questiona porque chegou tão tarde na noite anterior.
Ainda coçando os olhos, com a resposta ensaiada sobre suposta reunião de emergência convocada pelo chefe, pulou da cama ao ouvir a própria voz:
– Estava no motel com sua prima!
O casamento, óbvio, não resistiu ao dia da verdade. Mas, antes, o futuro ex-marido desejou saber aonde a mulher iria.
Ela também tinha uma resposta ensaiada. Mas não foi a mentira – e sim a verdade – que saiu:
– Torrar todo o seu cartão no shopping.
Na escola, o aluno bagunceiro enfim saiu do vermelho. Parabenizando pelo dez inédito, a professora o abordou:
– Então resolveu estudar Joãozinho?
Ele, mesmo sem querer, confessou:
– Então resolvi colar, professora!
Em todas as partes do mundo casais rompiam relações, crianças eram postas de castigo, funcionários demitidos, governantes destituídos.
Do Brasil, por exemplo, chegou a informação – já confirmada pelas agências de notícias – de que o Congresso Nacional abriu e fechou, dissolvido em caráter irrevogável, em menos de um minuto.
Executivos foram para a cadeia porque não conseguiam mais justificar que a evolução patrimonial era fruto de herança. Os desvios e falcatruas ficam a nu.
Figuras emblemáticas foram caçadas. Segredos históricos foram desvendados. Mentiras emblemáticas foram reveladas.
Sabendo dessa onda de verdade que varria o mundo, Lulinha até tentou se esconder, esperando sobreviver à hecatombe, mas acabou diante do seu xeque-mate:
– Sim, sabia de tudo.
Enquanto a verdade fosse inevitável, o caos também seria.
E nunca, em toda a história da humanidade, o homem entendeu com tanta profundidade o que disse o poeta Cazuza: mentiras sinceras me interessam.
A verdade é que a mentira é tão vital para a manutenção de tudo o que conhecemos e chamamos de mundo como qualquer outra força da natureza. Na ausência dela, o apocalipse seria de fato uma opção viável.
Mentiras, claro, também são extremamente venosas. Em um mundo onde só ela pudesse ser dita, o fim poderia até ser postergado, mas você é que não iria querer viver nele.
Ao final do dia da verdade, enfim capitulei que foi ele, o livre arbítrio, que nos trouxe até aqui, nos facultando o direito de escolher entre dizer a verdade ou mentir ou (o que quase sempre ocorre) recorrer ao meio termo.
Até porque, mentindo ou dizendo a verdade aqui embaixo, lá em cima Ele sabe sempre de todas as coisas.
Nota de rodapé: contei aqui – obviamente – muitas mentiras, entre elas livro e versículos que jamais existiram na Bíblia. Espero, porém, que reconheça em alguns trechos minhas meias verdades.