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Discurso científico, religioso e escolar pode provocar suicídio de LGBTIs

A dissertação “Precisamos falar sobre suicídio: discurso, corpo e resistência autoinfligida a poderes da heteronormatividade na era digital”, do pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Linguística (Proling) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Douglas de Oliveira, alerta sobre como as pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (LGBTIs) estão cinco vezes mais suscetíveis à prática de suicídio.

De acordo com Douglas de Oliveira, embora seja um ato aparentemente individual, o suicídio envolve uma ação social. “Se o indivíduo decide tirar a própria vida, é porque há algo na sociedade que o fez mal até o ponto de ir contra si. Há vários casos de suicídio fomentados por fenômenos sociais, como preconceito e bullying. Nossa saúde mental funciona a partir do equilíbrio entre o social e o individual”, explica.

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O índice de mortes por suicídio é maior entre jovens de 15 a 17 anos, segundo pesquisa da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Nessa fase, afirma o pesquisador Douglas de Oliveira, a construção de masculinidade e feminilidade, os padrões estabelecidos para o ser masculino ou feminino, gera conflitos nos adolescentes e o risco de suicídio aumenta.

“Com isso, há a objetivação do corpo LGBTI a partir de uma normalização. Esta vê o corpo de forma normatizada e estabelece padrões do que seria masculino ou feminino. Isso é muito perceptível em frases como “menino veste azul; menina, rosa” e, a partir das cores, passamos a dizer sobre os sujeitos. Temos comportamentos preestabelecidos para homens e mulheres por meio da objetivação do corpo”, reforça Douglas.

O pesquisador, em sua análise, constatou objetivação de corpos a partir de discursos científicos, religiosos e escolares. “A Organização Mundial de Saúde – OMS – estabeleceu que a homossexualidade e a transexualidade seriam desvios e transtornos mentais. Apenas na década de 1990 e em 2018, respectivamente, a homossexualidade e a transexualidade saíram da Classificação Internacional de Doenças – CID”.

No âmbito religioso, a partir do viés cristão, majoritário no Brasil, LGBTIs são guiados, segundo o estudo, para desqualificar o ser e o corpo diante de pregações bíblicas condenando vivências homossexuais e transexuais. “Já nas escolas, o bullying, violência verbal e simbólica, fragiliza indivíduos com traços considerados femininos em corpos ditos masculinos e vice-versa”.

Para Douglas de Oliveira, com os discursos heteronormativos e os xingamentos de pessoas LGBTIs, a subjetividade dos corpos se torna negativa e a liberdade dos seres vai se tolhendo.“Isso acaba padronizando os indivíduos a partir da heteronormatividade. O indivíduo LGBTI vai sendo objetivado enquanto corpo doente, passível de tratamento e intervenção médica e psicológica. Esses discursos científicos acabaram balizando os da sociedade e do senso comum, que passaram a tachar de indivíduos doentes a comunidade LGBTI, além de se acharem no direito de controlar e padronizar os seus corpos”, acentua.

O pesquisador trabalhou com enunciados em sua dissertação, partindo das coisas ditas pelas pessoas até chegar à história e aos discursos que permitem e possibilitam o surgimento das declarações. Ao estudar quatro depoimentos, publicados no site Youtube, de sujeitos homossexuais ou transexuais que tentaram cometer suicídio, analisou as afirmações. “Se houve fala sobre preconceitos, distinguimos quais conceitos ao longo da história contribuíram para esses pensamentos. Por exemplo, a mulher trans que ouve ser uma ‘aberração’. Onde na história está esse tipo de visão? Percebemos na CID e nos discursos científicos sobre sexualidade e gênero”, ressalta.

Análise do discurso

O filósofo francês Michel Foucault, pontua Douglas, tratou do discurso de poder incidindo sobre o corpo. “O poder só pode existir e manter-se através de uma superfície concreta. O autor considera o corpo como esta superfície”, reflete. Quando o corpo sofre pressão de uma sociedade heternormativa, pode reagir por meio de manifestações. “Como tatuagens e adereços que confirmem a identidade e sexualidade. Mas também pode ter reações de resistência do seu eu diante das relações de poder”, enfatiza.

Segundo o filósofo, onde há poder existe resistência. Entre as mínimas possibilidades de resistir às relações de poder, cita Foucault, estão a de ‘matar o outro’ (assassinato), ‘pular de uma janela’ (fuga) e ‘a de se matar’ (suicídio). “Há pessoas que tentam suicídio e descrevem traumas e preconceitos contra sua sexualidade e identidade de gênero como uma forma de fugir do controle e do poder sobre o corpo. Então, o próprio corpo, que é controlado e objetivado, também resiste ao se ferir, é uma resistência autoinfligida. Os indivíduos se voltam contra a falta de liberdade para sua vivência e escolhas”, adverte Douglas.

O historiador francês Georges Minois reforça, na obra História do Suicídio, que o ato de se matar sempre foi, ao longo da existência humana, uma forma de resistência social. “Se os governantes e membros de instituições religiosas, por exemplo, não garantem vida e felicidade a toda a população, então o suicídio se tornou uma forma de resistência indireta a esses dirigentes. Eles têm a função de propiciar bem-estar a todas as pessoas, mas, se há alguém que não está bem e quer tirar a própria vida, algo está errado nessa sociedade”, endossa o pesquisador.

Conforme Douglas, em seu estudo foi constatado que os sujeitos, após tentarem se matar, gravaram vídeos da própria situação para saírem do controle e da vigilância dos corpos. “Discutiram as experiências como uma forma de irem além do sofrimento diante das situações de controle e acabaram por incentivar outras pessoas a comungarem com as histórias de vida”, alega.

Essas posturas revelam, consoante os pensamentos de Foucault, a relação entre o sujeito, o cuidar de si e o cuidado do outro. “A verdade dos sujeitos é atestada quando falam sobre si. As próprias pessoas falando sobre as experiências delas geram mais identificação em outros indivíduos. Nos depoimentos, as pessoas retrataram a realidade de sofrimento, chegaram ao ápice desse sofrimento com a tentativa de se matar e, no fim, buscaram possibilidades de resistência. Cuidar de si e de outros é apontado como um divisor de águas para a aceitação da realidade e a existência de cada ser”, argumenta Douglas.

Mortes LGBTIs

O suicídio é a quarta principal causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde (MS). A comunidade LGBTI tem cinco vezes mais chance de cometer o ato, atesta pesquisa da Universidade de Columbia. O risco de suicídio é 21% maior quando LGBTIs convivem em ambientes hostis à sua vivência sexual ou identidade de gênero. Desde 2016, o Grupo Gay da Bahia (GGB) inclui o suicídio em seu levantamento de mortes violentas contra LGBTIs no país. Naquele ano, foram 26 registros, contra 100 casos em 2018, um aumento de 284% no período.

Douglas de Oliveira diz que “esses assuntos tabus na sociedade – suicídio e sexualidade – continuam silenciados. Acredito que só conseguimos transpor as barreiras por meio da informação”. Para ele, informar-se é essencial para a conscientização e a sensibilização das pessoas. “Comportamentos empáticos e tolerantes surgem daí. Precisamos falar sobre amor, empatia e vida para todos os seres. A diversidade humana tem de ser contemplada. É necessário também desmistificar o suicídio como ato de fragilidade e consequência de um transtorno mental, é algo que pode ser derivado de desigualdades existentes na sociedade”, frisa.

Valorização da vida

O Centro de Valorização da Vida (CVV) realiza apoio emocional e prevenção do suicídio. Os atendimentos são realizados de forma voluntária e gratuita para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, 24 horas por dia, através do telefone 188,  e-mail ou chat.

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