Diplomado pela Northwestern University, Chicago (USA), o doutor René Ribeiro, meu pai, conseguiria nos idos de 1949, em pleno pós guerra, a façanha de se tornar o primeiro brasileiro a se formar em Antropologia (Master of Arts) nos Estados Unidos.
A formação norte-americana o influenciaria, claro, a desenvolver posicionamentos anti-comunista. Foi influenciado pelo macartismo (termo cunhado em referência as ações, contrárias ao comunismo, desenvolvidas pelo senador norte-americano Joseph McCarthy, ex-general).
Estas influências o fariam apoiar a “revolução” militar, que ascendia ao poder sob o pretexto de blindar o Brasil do processo de sovietização que ameaçava tolher nossa democracia.
O jovem Roberto tinha apenas 17 anos, mas está muito bem registrado em minha memória o desfile de blindados nas ruas do Recife. Eles não me causavam temor. Entendia – por osmose aos posicionamentos do doutor René- que se tratava de uma ação de salva pátria.
Abraçar as causas do movimento militar, como fez a família Ribeiro, me deixa (até hoje) muito a vontade para falar sobre março de 64.
Obviamente, nossa crença durou pouco. Assisti, ao longo do tempo, o desencantamento do doutor René com a “revolução”. Sua formação humanista – como antropólogo e médico – não permitia coadunar com o que veio a seguir.
Os militares – como hoje sabemos e a história atesta – não se contentariam em ser apenas tampões temporários na ferida exposta pelo comunismo.
Queriam – e efetivamente foram por longos vinte anos – ser uma espécie de medicação ininterrupta para uma doença crônica e incurável: a deles mesmos, viciados e dependentes do poder.
Aliás, a perpetuação de poder é inerente a toda ditadura, independente de suas ideologias.
Já universitário, testemunhei a radicalização do militarismo. As eleições gerais previstas jamais aconteceram. O Congresso foi fechado. Lideranças com potencial para balançar as hostes militares foram esmagadas. E milhares de civis tiveram os direitos políticos cassados – incluindo, nessa leva, até os que estavam comprometidos com a revolução, a exemplo de Carlos Lacerda e Juscelino Kubitschek.
Com o recurso das eleições indiretas, criaram aberrações como senadores biônicos. Também sem votos, governadores recebiam, nos estados, o direito de indicar os prefeitos das capitais.
E foi neste sistema de arbítrio, pulverizador de toda uma geração política, que se forjou a herança político-partidária que hoje recebemos.
A atual classe política nasce de embriões totalitários, sem ideal ou identidade popular, amorfa ideologicamente.
O que, então, se pode esperar desse caldo genético-cultural?
Ética? Fora do manual.
Impunidade? Essência da cultura ditatorial.
Corrupção? O poder absoluto leva a corrupção absoluta.
Esta é a nossa safra política, colhida em porões escuros, onde a força valia mais que as idéias. A manutenção do poder justificava tudo. E quem tinha a arma, tinha sempre razão.
Fica a lição histórica. E a certeza de que levará ainda uns bons anos – décadas talvez – para reconstruir e solidificar as instituições políticas e fecundar, nas instâncias partidárias, alguns genes ideológicos.
Eleição após eleição, cristaliza-se a certeza de que, de fato, ainda demora. Pois o que temos agora não é muito melhor do que tínhamos nos anos de chumbo, quando as “fardas” pensantes simularam a reabertura política com a instituição do bipartidarismo.
Alguém pode achar que 32 partidos é melhor que dois (Arena e MDB). Mas acho apenas que é mais. Ponto.
Se, além do número, tivesse incremento de valor, a classe política atual não estaria sendo alvo de tamanha descrença – um processo pandêmico que atinge todo o País, de um extremo a outro.
Essa descrença – criada pela própria classe política – é tão ampla, intensa e generalizada que pode levar o País a tudo. E a incerteza que ronda esse “tudo” coloca o coração da nação na mão. Reina, neste 2014, a angustia do porvir.
Pois ainda colhemos o que semeamos na aridez das restrições políticas.
Ainda lutamos contra o câncer que eclodiu em março de 64 e que, após tantas ampolas de democracia, ainda teima em fazer metástase no tecido social-político brasileiro.