Um local abandonado, com a estrutura completamente exposta e decadente, com lixo, sujeira, buracos por todo lado, fios elétricos à mostra, condições insalubres, além do iminente risco de desabamento. Essa é a moradia de muitas famílias que vivem na Comunidade Vitória, no Altiplano, em João Pessoa. Todas elas estão à mercê de uma tragédia anunciada, assim como aconteceu em São Paulo na terça-feira (1°).
Ao chegar lá, a primeira impressão que fica é a dúvida sobre como aquelas pessoas conseguem viver naquele lugar. Os corredores estão tomados por lixo e o esgoto escorre pelas escadas. Animais se confundem com objetos deixados ali pelos moradores, embalagens de alimentos enlatados, cheiro forte de fezes, urina e comida estragada.
Assim que subimos o primeiro vão de escadas, a única coisa que vimos foi uma grande cortina de fumaça tomando conta do lugar. Era Ériton Raniery Sousa do Nascimento, um dos moradores, improvisando um fogão em uma lata de tinta usada, com alguns pedaços de madeira. Ele estava aquecendo uma lata de feijão instantâneo, mas quando notou nossa presença, logo apagou aquele fogo e nos mostrou sua dura realidade.
Existem regras no local. De acordo com Ériton, a única necessidade fisiológica permitida no local é urinar. Defecar, como ele explicou, não é permitido no local, pois ocasionaria e potencializaria o odor de esgoto que se espalha em todos os ambientes.
Os corredores são completamente temerosos, com buracos em cada metro. E esses mostram com muita ênfase o quanto aquele piso é fino, redobrando ainda mais a atenção de quem anda por ali. Alguns buracos são tapados com restos de cerâmica que caem da estrutura do prédio.
Ao alertar os moradores sobre os buracos, eles brincavam e diziam: “Você não viu nada, isso aqui é fichinha’’. Eles já se acostumaram com as péssimas condições de onde vivem, mas claro, temem que o pior possa acontecer. Alguns lugares já foram isolados por segurança, mas de forma precária pelos próprios moradores.
Nos barracos que foram construídos ao redor do prédio, a situação não muda muito. Apesar de serem mais seguros, as condições básicas para a sobrevivência não existem. Os moradores vivem em meio a ratos, aranhas, cobras, esgoto a céu aberto e, em caso de tempo chuvoso, convivendo com os alagamentos e as goteiras durante todo o dia.
Viver em um lugar como esse é, sem dúvidas, algo bastante complicado, principalmente quando as condições para uma possível mudança praticamente não existem. Os moradores clamam por um lar que possam chamar de seu, mas, sobretudo, sofrem por não dormirem tranquilos, pois a vida deles está em constante perigo naquele lugar.
Toda essa situação foi compartilhada por alguns moradores do local. Rayanne dos Santos viveu no prédio durante nove anos e agora vive em um barraco construído no entorno dele. Rayanne narrou um fato que comoveu muitos moradores da Comunidade Vitória. Ela contou a história de um bebê que quase foi vítima de um pedaço de cerâmica que despencou da estrutura do prédio em um dia de muita chuva.
“A minha vizinha tinha uma bebezinha e ela colocou a filha para dormir enquanto outras pessoas estavam ajudando para conter as goteiras. Quando chegamos lá em cima para organizar a lona para não cair mais água, caiu uma lajota muito perto da cabeça da menina. Ficamos apavorados e decidimos sair do prédio para uma escola. A prefeitura tirou a gente do prédio e deu o auxílio aluguel de R$ 200, mas o valor não era suficiente e só durou por dois anos. Por isso voltamos a morar aqui convivendo com essas condições precárias”, disse a moradora Rayanne dos Santos, mais conhecida na Comunidade como “Keka”.
Rayanne revelou também o medo que sente quando existe a possibilidade de “tirarem os moradores daquele local”, pois não se sente segura em ir para um lugar desconhecido.
“A gente vai morrer por causa de casa? Eu tenho medo de perder, pois como lhe disse, desde 2009 que venho lutando. Rezo todo dia para que nunca venham mexer com a gente, porque se eles vierem não teremos o que fazer, não temos dinheiro para lutar, se tivéssemos condições, comprávamos nossas casas e moraríamos tranquilos. Eu durmo sabendo que a qualquer momento posso sair”, revelou Rayanne.
Já Maria Célia, de 47 anos e moradora da comunidade há três, falou sobre as condições básicas para viver no local. Segundo ela, os moradores moram no local não por serem “baderneiros”, mas porque não têm moradia nem condições para pagar aluguel.
“A gente mora aqui não é porque somos baderneiros nem que gostamos de fazer confusão. Moramos aqui pois não temos condições de pagar um aluguel. Quem ganha um salário mínimo jamais pode pagar um aluguel de R$ 400, comer, comprar remédios, gás e dizer que vive bem”, disse Maria Célia.
Apesar de todas as dificuldades, Maria Célia não se envergonha de sua moradia e diz: “Sou feliz aqui. Apesar de tudo, minha felicidade é garantida neste lugar, com meus netos, minha filha e toda a vizinhança. Somos muito unidos”, disse.
Trabalho
A maioria das famílias se sustenta com o trabalho informal. Segundo os moradores, a maior fonte de renda deles é a venda de produtos na praia, tais como água mineral, água de coco etc. Outros preferem cuidar de carros, como flanelinhas, tem também aqueles que catam latinhas para venderem na reciclagem, mas a busca por uma mínima condição financeira é presente e viva na comunidade.
As mulheres relataram que fazem os trabalhos do lar. Recebem o benefício do Bolsa Família, mas de acordo com elas, é um orçamento que não consegue dar conta de todas as necessidades familiares. Algumas fazem trabalhos domésticos, como diaristas em outras residências.
Defesa Civil monitora situação
“Se não houver manutenção, o risco (de incêndio e desabamento) sempre existe, mesmo sendo uma ocupação de forma correta”. A afirmação é do coordenador da Defesa Civil de João Pessoa, Noé Estrela, em relação aos prédios localizados na Capital. A análise foi feita após o incêndio e desabamento de uma construção de 26 andares ocupada irregularmente em São Paulo. Em João Pessoa, o edifício que oferece maior perigo é a antiga sede do INSS, na Rua Duque de Caxias, Centro, atualmente ocupado por comerciantes.
Segundo ele, o risco pode estar na fiação, com um incêndio como consequência. “E, em uma ocupação irregular, as pessoas juntam lixo e outros produtos que podem gerar combustão maior e a problemática”, observou. “Já retiramos famílias dali três vezes, mas como não foi cedido para a prefeitura, fica difícil”, lamentou Noé, que está à frente da Coordenadoria Municipal de Proteção e Defesa Civil (Compdec). Ele afirmou que o prédio que abrigava o INSS pertence à União. Essa deverá ceder o imóvel à Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP). O coordenador ressaltou que, mesmo o prédio do INSS não sendo mais ocupado por moradores, tem um risco potencial de incêndio, já que vários andares são ocupados por produtores dos objetos que são vendidos no local.
A Compdec preparou um relatório e encaminhou aos órgãos aos quais pertencem os imóveis. O prédio da Duque de Caxias, por exemplo, para o INSS. Já o antigo Hotel Nazareno, que é particular, para o Ministério Público Federal (MPF). Outro prédio citado foi o da Escola Estadual de Ensino Fundamental Índio Piragibe, que fica nas Trincheiras. “Não podemos comparar os prédios daqui com o de São Paulo. O maior é esse do INSS, mas vale lembrar que numa ocupação irregular sem manutenção pode haver o risco de incêndio, um colapso da estrutura”, enfatizou. Em relação às inspeções, o coordenador afirmou que sempre estão sendo renovadas.
Famílias relocadas
O número de famílias que foram retiradas, desde o início da gestão, de prédios de ocupação pública que não pertencem à PMJP é 240. Entre eles, estão o antigo Hotel Tropicana, no Centro; o Ricardo Brindeiro, no Colinas do Sul; o Dnit, em Cruz das Armas.
Bombeiros
A assessoria de imprensa do Corpo de Bombeiros Militar da Paraíba (CBMPB) informou que só poderia intervir se houvesse algum risco muito claro de desabamento ou incêndio. Como são ocupações multifamiliares, ou seja, não se tratam de empresas ou indústrias, e não há risco iminente, os bombeiros não podem interditar. O máximo que o Corpo de Bombeiros pode fazer, conforme a assessoria, é uma vistoria no local e entregar o relatório ao proprietário.
CREA
O gerente de fiscalização do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura da Paraíba (Crea-PB), Antonio César Pereira Moura, informou que não fiscaliza prédios prontos. Apenas em fase de execução ou em caso de manutenção ou reforma da obra. Ele informou que o município está estudando a criação de uma lei municipal para inspeção desses prédios, como foi feito no Rio de Janeiro. “É importante que isso seja feito”, disse. O Crea pode fiscalizar ainda se há profissional qualificado durante algum processo de manutenção.
*Com colaboração de Lucielene Meireles, do Jornal Correio da Paraíba