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O exemplo de Olga

Se tivesse que traduzir em uma palavra este instante brasileiro, escolheria – sem titubear – um substantivo que paira onisciente sobre o firmamento dessa República:

Delação.

Entre seus predicados mais alvissareiros, a delação verbaliza o crime. E acelera o combate à criminalidade.

O malfeito – sempre operado de forma tão silente – se vê obrigado a se pronunciar – se rendendo, se entregando, mostrando sua verdadeira e imunda face.

As delações nossas de cada dia quebraram a lei do silêncio. E têm mostrado – repito – uma eficiência inquestionável no desbaratamento da quadrilha que saqueou o País.

Políticos, gestores públicos, empresários – todos foram arrastados para esse enredo criminoso construído a partir das delações.

Por que, então, toda essa assertividade e efetividade não pulverizam o desconforto que esse substantivo feminino, e sua flexão verbal, provoca?

Porque a delação pode ser eficiente, mas seu princípio não é puro.

A ética grita.

E o primo em primeiro grau desse vocábulo é o pouquíssimo nobre alcaguete. Que, em sua versão mais coloquial, aparece como dedo duro.

Externo esse desconforto, com todas as ressalvas e parênteses, no momento em que Anita Leocádia Prestes revela ao mundo uma história trágica que dormiu por quase um século atrás das paredes do Kremlin.

A história de sua mãe, Olga.

Se os brasileiros pensavam que sabiam em minúcias o drama da líder comunista, esposa de Luiz Carlos Prestes, morta há 75 anos em uma câmara de gás de um campo de extermínio nazista, vislumbrarão agora uma imagem mais definida do caráter e da coragem de Olga Benário Prestes.

A mulher que foi entregue ao nazismo pelo ditador Getúlio Vargas como um gesto de simpatia a Adolf Hitler, mesmo que em seu ventre batesse o coração de uma criança brasileira, reafirma agora seu lugar na história.

Em oito dossiês, constituídos por mais de 2,5 mil páginas – o mais volumoso do catálogo produzido sobre os presos do nazismo – o “Processo Olga” conta a saga de uma mulher com um estoque de coragem tão raro e ilimitado que deixaria a maioria de nossos delatores rubros de vergonha.

Nada – nem as torturas, nem a separação do marido, nem o isolamento e nem mesmo o uso de seu bebê como peça de barganha – fizeram Olga delatar seus companheiros comunistas.

A nobreza e coragem de Olga vêm de uma fonte incontestável: seus próprios carrascos.

Diante dos olhos da Gestapo, ela escreveu de próprio punho: “Se outros se tornaram traidores, eu jamais o serei”.

Mesmo estando em front ideológico oposto ao de Olga – crítico desse engodo que os teóricos de esquerda vendem como comunismo e seus derivados igualmente danosos – impossível não reconhecer sua firmeza de caráter. E a manutenção intacta de seu espírito em meio a tantas atrocidades.

Voltando a este instante, o bom senso (ou pelo menos o senso de oportunidade) nos manda torcer para que o fluxo de delações continue jorrando as nossas verdades muito secretas.

Mas já sabemos – aqui e agora – que quando o dossiê da república da delação for aberto na posteridade, a história (implacável, desapaixonada e descomprometida) não nos permitirá uma dose sequer do orgulho que Olga serviu para Anita.

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