Desde menino, sempre fui fascinado por bateria. Tanto que, aos doze anos, garoto do interior, meu grande ídolo era Milton Banana (Trio). Ao lado dele, Netinho de “Os Incríveis” e Castelo, baterista do conjunto “Os Selvagens”, em Patos; mais tarde, baterista da Orquestra Sinfônica da Paraíba.
E tocava as tardes inteiras, na minha bateria improvisada, infernizando a vida da minha mãe e dos vizinhos: o caixa, uma gaveta de penteadeira; o tantã, uma caixa de biscoitos sortidos; o prato, um pedaço de flandre redondo, ou uma tampa de panela. chimbau e pedal não poderiam – é claro – existir.
João pessoa, 1975. Estudante do Lyceu Paraibano, avistei um anúncio que me fez delirar: seleção para tarolista do Lyceu; interessados deveriam comparecer, determinada noite, no auditório do estabelecimento.
Na data marcada, é claro que eu estava lá. De cara, avistei Bereguedê, que fora primeiro tarolista do Estadual de Jaguaribe. Mas não me intimidei; sabia do meu potencial; ademais, não havia tantos candidatos assim.
O instrutor da banda, porém, me decepcionou. Pensava eu que fosse haver um concurso, cada um tocasse um pouco, disputasse, etc. Qual o quê! O professor chamou Bereguedê, os tarolistas que já tocavam na banda do Lyceu e, quanto ao resto, disse: “Vão lá em cima (no depósito de instrumentos) ver se sobrou algum”. Foi correria geral. Eu, magro, raquítico, encabulado, demorei um pouco a fazer carreira. A verdade é que me sobrou um caixa anacrônico, ainda de couro, e com um aro quebrado.
Cheguei-me, então, ao professor. Tentei argumentar que tocava bem tarol, mas ele me olhou de cima a baixo e, talvez pela minha estatura e magrém, não tenha acreditado muito nisso.
Fiquei com o único instrumento que me restava, embora não gostasse da ideia de tocar um instrumento que, além de caixa, era ultrapassado, já que, na época, imperavam os instrumentos de pele sintética.
Havia outro problema: o professor me dissera que o colégio não tinha dinheiro para pagar o conserto e eu “me virasse”; estivesse lá, semana vindoura, na terça, para o primeiro ensaio.
Como andei atrás de alguém que me fizesse um aro de madeira para o meu caixa! Sem conhecer direito a cidade, fui bater na Ilha do Bispo, na beira de uma linha, após pegar quatro ônibus. Um velho abusado me recebeu e disse – ele era minha última esperança – que não faria, porque não compensava. Expliquei-lhe meu drama, e ele fez o bendito aro, mas sob pagamento adiantado, que só Deus sabe o quanto me custou.
E estava eu, feliz, nos ensaios, na Duarte da Silveira. Mas não estava realmente feliz; odiava as limitações do caixa, bem como sua batida repetitiva e monótona; de modo que passei a tocar o caixa como tarol. O professor para o ensaio:
– Quem é o filho da p… que está tocando caixa como tarol?…
O professor sabia que era eu; o meu caixa tinha um som horrível, diferente dos demais. Chegou-se para mim – agora com carinho –: – Sei que é você. Tem nada não; no dia do desfile, logo que passemos do palanque central, você pode realizar seu sonho: tocar seu caixa como tarol. Desfilei, no dia sete, com a maior alegria do mundo, pensando em 76.
76. Eu, tarolista do Lyceu; nem podia acreditar.
Mas justamente naquele ano, algo que marcaria minha vida aconteceu. Após vencer um concurso de poesia disputado entre alunos de todos os estabelecimentos de ensino secundário no estado, fui representar a Paraíba num concurso nacional, em Salvador.
Era a “glória”. Notícias em jornal, passagens de ônibus pagas pelo governo; estada lá, paga pelo colégio patrocinador… Um detalhe: a apresentação seria no dia 7 de setembro. O instrutor da banda ainda tentou me chamar de ingrato, mas foi vencido pela lógica dos argumentos.
Sete de setembro de 1976. Meu poema “Realidade” foi lido em Salvador, para uma plateia numerosa. Morria, assim, um tarolista e nasceria um poeta. O poeta “morreria”, mais tarde, para dar vez ao professor.
Hoje, o meu som ecoa nas salas de aula, em forma de poesia. Mas o rufar do meu tarol tem um quê de tristeza e melancolia.
* João Trindade