Quando abateram o Boeing 777 da Malaysia Airlines na semana passada, separatistas ucranianos foram além da matança coletiva de centenas de inocentes. Eles perpetraram um atentado contra a humanidade.
Pois podem ter derrubado, junto com a aeronave, a esperança de cura para a Aids.
Dos 298 mortos (todos civis, sem qualquer relação com a contenda que se desenrola na Ucrania), 108 eram pesquisadores, em trânsito para a 20ª Conferencia Mundial de Aids, em Melbourne, Austrália.
Entre eles estava, por exemplo, Joep Lange, autor de pesquisa divulgada recentemente em que demonstra, pela primeira vez, como um composto probiótico poderia atuar no vírus HIV.
Alvo – errado – de bárbaros com livre acesso a armas de alto poder letal, a aeronave transportava conhecimentos amealhados em mais de 20 anos de pesquisas intensas.
A comunidade científica mundial acusou o golpe: há de fato enorme chance de termos perdido, em meio aos escombros da fuselagem, a cura da doença que já matou mais de 25 milhões de pessoas.
Não se trata de um ônus pequeno. Especialmente no Brasil, onde as estatísticas de incidência da Aids andam na contramão da tendência de queda aferida no restante do mundo.
Dados divulgados há poucos dias pela Unaids, programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids, mostram que o índice de novos infectados pelo vírus no Brasil subiu 11 por cento entre 2005 e 2013. No mesmo período, a quantidade de casos no mundo caiu 27,5% – de 2,9 milhões, em 2005, para 2,1 milhões, em 2013.
Os números desenham um cenário em que está patente o destemor dos jovens brasileiros em relação a Aids. Para a maioria deles, a doença não é mais tão letal. Deixou de ser, a partir dos coquetéis, uma sentença de morte.
Estão errados.
Eles podem não temer a Aids, mas deveriam.
De acordo com o relatório da Unaids, a doença matou 15 mil brasileiros – a maioria jovens – em 2013. E a cada hora, dez novas infecções ocorreram na região compreendida pelo Brasil, Chile e Paraguai. Em todo mundo, o número de infectados é da ordem de 35 milhões.
Claro que a falta de temor não se instalou por acaso. De fato, pesquisas e investimentos – como as que os passageiros do voo da Malaysia realizavam – trouxeram esperança e qualidade de vida aos portadores do HIV.
E já não somos mais sacudidos, dia após dia, com o obituário vertiginoso anunciando perdas célebres como as de Cazuza, Freddie Mercury, Renato Russo, os irmãos Henfil e Betinho, Rock Hudson, Rudolf Nureyev, Sandra Bréa.
A lista de perdas, ocorridas nas décadas de 80 e 90, é quilométrica. Atualmente, contudo, ela continua extensa.
Anonimamente, milhares continuam a morrer em função da Aids.
E relaxar em relação as formas de prevenção está construindo um fenômeno perigoso.
A Aids não é, ao contrário do que os jovens pensam, a doença que assustou a geração dos pais. Ela continua presente, silenciosa, abatendo milhões de desavisados.
Não é o que gostaria de vaticinar, mas creio que nem tão cedo voltaremos – e o míssel separatista adia ainda mais esse calendário – ao tempo em que a prevenção se resumia a pílula anticoncepcional.
Do destemor total que meus contemporâneos experimentaram ao terror que a geração de Cazuza viveu, chegamos aqui a esta esquina temporal temerária.
Um lugar e um tempo em que, desavisadamente, as novas gerações pensam que abateram o monstro da Aids.
E são tragados por ele.