Nas cidadezinhas do interior, na década de 1960, quando morria alguém o sino da igreja ficava repicando, com musicalidade plangente, compassado, vagaroso.
No mesmo momento, a difusora local passava a rodar uma só faixa de música clássica qualquer, e, ao terminar a faixa, anunciava a morte da pessoa.
O menino não entende por que, mas quando escuta “A Lenda do Beijo” começa a chorar.
Poucos dos irmãos, principalmente os mais velhos, escutaram “A lenda do Beijo”. Estavam fora da cidade.
Mas alguém falou para o menino:
– Quando seu pai morreu, a difusora tocou “A lenda do beijo”.
The Pop’s toca “A lenda do beijo” e o menino chora.
Mas o ritmo é muito acelerado.
Mesmo assim, o menino chora, lembrando o pai.
Não conheceu o pai. Jamais o conhecerá. A última lembrança é a da última noite: um quarto quase tomado de algodão, um candeeiro.
– Homem, esse algodão pega fogo – era a fala da esposa do lavrador e mãe do menino –. Ao menos bote esse bichinho pra dormir.
– Não. Deixe ele aqui.
E o menino adormeceu no colo do pai, para, no dia seguinte, no meio da manhã, saber a notícia: o pai morrera. E ele, o menino, sem entender o que era morte, viu jogarem terra em cima do pai.
O menino entendeu, então, que o pai não voltaria. Foram lágrimas “poucas e caladas”. Não entendia bem o que era a morte. Hoje, chora e entende.
O menino chora. Escuta “The Pop’s”. Mas The Pop’s, um ritmo tão acelerado? Há uma versão clássica de “A lenda do Beijo”, mas o menino não consegue achar o CD. “A Lenda do Beijo” persegue o menino.
Um dia, numa longínqua cidade do interior, alguém tocou essa música: o menino guardou. Assim como guardou o caminho para a roça, a visão do pai, morto, os gritos, o desespero, a assombração… E, no dia seguinte, o último beijo: terra em cima do seu pai.
Foram lágrimas “poucas e caladas”. Lágrimas inocentes. Talvez por isso, verdadeiras.
O último beijo. Seu pai, hoje e para sempre, uma lenda.
Um beijo amargo, mas beijo de lembrança eterna.
(Publicada, originalmente, no extinto jornal “O Norte”, em 20 de novembro de 1999).