João Trindade
“Cantei pra te dormir”
A frase do título é um verso de uma das mais belas canções que conheço e está entre minhas preferidas: “Menina”, de Paulinho Nogueira.
Quem escuta só a melodia (sem conferir a letra) tem a falsa ideia de que a construção está errada:
– Como é que Paulinho Nogueira – já me disse alguém – comete um erro desse: colocar um pronome tônico seguido de infinitivo?
Ocorre que Paulinho não fez isso! Não cometeu, portanto, erro algum…
Como já disse nas primeiras linhas, se apenas escutarmos a melodia teremos a impressão de que ele disse: Cantei para ti dormir.
Se assim fora, estaria errado, do ponto de vista gramatical.
Como já se leu no título, Paulinho usou a construção: “Cantei pra te dormir”; empregou o pronome oblíquo átono te, não o tônico “ti”.
Mas, ainda assim, persiste dúvida: A construção estaria correta? Poder-se-ia argumentar:“O verbo dormir não é intransitivo”?
Ora, não há regências imutáveis, conforme já afirmei em diversos artigos meus e em diversos livros, idem. A maior bobagem do mundo é estudar verbo por “tabelas”: “verbo tal é transitivo indireto”; “verbo tal é intransitivo”. Tome-se como exemplo clássico o verbo amar: Se eu digo: “Eu amo demais”, o verbo, aí, é intransitivo; já se eu digo: “Eu amo você”. O verbo é transitivo direto. Tudo é uma questão de contexto…
Mas o verso de Paulinho ainda dá margem a outra discussão:
Poderia o verbo dormir, nesse contexto, funcionar como transitivo direto? Não teria que ser intransitivo, equivalendo a: “Cantei pra você dormir”? Ou: Cantei para tu dormires?
Aí é que entra a questão da licença poética.
Não pense o leitor que licença poética dá ao autor o direito de errar eatentar contra a gramática. Na licença poética, o autor subverte a gramática, mas em nome da estilística; da beleza estética. E evitemos comentários irônicos do tipo: “Quer dizer que um escritor pode errar, e eu, não…”.
Não é que o escritor possa “errar”. É que ele pode subverter a Língua-padrão, em nome de uma construção poética. Óbvio que não se pode perdoar ao escritor, num poema, por exemplo, escrever: “A turma saíram logo cedo”. Isso não é licença poética: é ignorância em relação aos padrões da Língua. Ele até poderia usar, caso estivesse transcrevendo a fala de uma personagem tosca, como fez Humberto Teixeira, em: “Assum Preto veve sorto”. A frase não está errada; o poeta está transcrevendo a linguagem de um homem, iletrado, do campo.
Voltando a Paulinho, ele não quis dizer:
“Cantei pra te (fazer) dormir”
O poeta transitivou!…
É como se dissesse: “Cantei pra dormir você”. Não é: “Vou te fazer dormir”; mas sim, “Vou te dormir”.
O mesmo recurso a gente encontra, de forma genial e perfeita, naqueles que eu considero os mais belos versos da música brasileira:
“Se eu pudesse te nascer de novo
Eu juro que te morreria minha…”
O recurso é o mesmo:
O poeta Mílton Carlos transitivou os verbos “nascer” e “morrer”.
E nos versos divinos dos dois poetas, a gente embala o leitor e termina nosso artigo.
Boa semana de vigílias, sonos e sonhos!…
Professor João Trindade