Estava em meu carro, na companhia da minha filha Bruna, quando o semáforo ficou vermelho. Parei. Imediatamente olhei para o veículo também parado ao lado. Mas, diferente do meu, os vidros estavam escurecidos por película. Pensei em voz alta:
– Que pena! Estou olhando em direção a pessoa que está no carro ao lado para cumprimentá-la, mas não consigo sequer enxergá-la!
Minha filha me olhou espantada – parecia que estava diante de um ser jurássico. E explicou o espanto:
– Na minha geração, ninguém mais se cumprimenta no trânsito, Rob! Não existe mais esse negócio de acenar para o carro ao lado.
Foi um episódio banal, mas subitamente entendi essa estranha dinâmica do mundo em que estou vivendo.
Venho de um outro mundo mesmo; de uma era que parece tão distante quanto a idade da pedra. E naquele universo, as pessoas cultivavam a cortesia.
Hoje ninguém mais se cumprimenta – nem no trânsito nem em lugar algum.
Mas talvez seja justo no trânsito onde a morte da cortesia parece mais velada e enterrada:
Se você tenta mudar de faixa, o cidadão força a aceleração ao máximo para impedi-lo. Sair do estacionamento, então, é uma loteria – mesmo pedindo educadamente, alguém vai avançar e obstacular a saída. As buzinas entrarão em cena em ruidosa sintonia. Os xingamentos idem.
Onde foi parar a cortesia? A gentileza?
Sumiram juntas nos labirintos urbanos agingantados. Perderam-se entre milhares de anônimos. Viraram fumaça no asfalto.
Será que migramos para um beco sem saída?
O fato é que, de 50 para cá, o Brasil começou a arrumar as malas, sair dos campos e aportar nos núcleos urbanos. Até 40, apenas 12,9 milhões estavam nas cidades (algo em torno de 30% da população total). Em 2005, de acordo com o censo do IBGE, a taxa de ocupação urbana subiu para 84,2%. E a estimativa é que, em 2025, o percentual seja de 93,6%. Isto significa quase 240 milhões se espremendo nas cidades, cada dia mais longe dos campos.
Os sociólogos chamam o fenômeno de êxodo rural.
A alcunha cabe como uma luva. No antigo teatro romano, essa era a definição do “episódio cômico subsequente a uma tragédia”. O nosso êxodo, porém, não tem comicidade alguma.
E a falta de cortesia; de empatia com o outro são apenas algumas das facetas desse infortúnio social.
Mas não acredito que essa brutalização ocorre só porque somos muitos – e nos desconhecemos em meio a multidão.
É, sobretudo, comportamental.
Quem me conhece, sabe que ao entrar no Sistema Correio – ou em qualquer outro ambiente – procuro socializar com todos a minha volta. Não só com o costumeiro bom dia, boa noite. Mas com interações que nos aproximam: observo mudanças no visual, quero saber se está bem, onde foi o feriadão…
Dentro da cortesia está o cavalheirismo, outro fenômeno em extinção neste novo mundo. Percebo isso ao causar espanto quando cedo meu lugar para uma senhora ou puxo a cadeira para minha acompanhante sentar.
São atitudes tomadas por herança dos meus pais. E que tento legar aos meus filhos.
Todos eles procuram mimetizar meus gestos – o que prova minha tese de que gentileza é fruto de aprendizado, de culto repetido e repassado.
O sorriso, o gesto de cumprimento, a gentileza podem – aos olhos de muitos – ter perdido a função.
Mas, acreditem, fazem uma imensa diferença.
Nos humanizam.
E tornam mais leve e suave essa angustiante compressão social.