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Professor Trindade

Entre alguns “intelectuais”, há uma ideia bastante equivocada sobre o “fato” de que letra de música não é poesia. Nada mais equivocado. É poesia, sim; até mesmo nas consideradas “bregas”.

Vejamos uma letra maravilhosa, cantada por Reginaldo Rossi: “A Raposa e as Uvas”. Além de ter poesia e recursos literários como, por exemplo, a intertextualidade, retrata, com precisão, um determinado período da década de1960, de forma exata e fenomenal:

“Lembro com muita saudade
Daquele bailinho
Quando a gente dançava
Bem agarradinho
Quando a gente ia mesmo
Pra se abraçar

Você com laquê no cabelo
E um vestido rodado
E aquelas anáguas
Com tantos babados
E você se sentava
Só pra me mostrar

E tudo que a gente transava
Eram três, quatro cubas
Eu era a raposa
Você era as uvas
Eu sempre querendo
O teu beijo roubar

E por mais que você
Se esquivasse
Eu tinha certeza
Que no fim do baile
Na minha lambreta
Aquele broto bonito
Ia me abraçar

Quando a orquestra
Tocava besame mucho
Eu lhe apertava
E olhava seu busto
Dentro do corpete
Querendo pular

Eu todo cheiroso
A Lancaster
E você a Chanel
Eu era um menino
Mas fazia o papel
Do homem terrível
Só pra lhe guardar

E tudo o que a gente transava
Eram três quatro cubas
Eu era a raposa
Você era as uvas
E eu sempre querendo
Seu beijo roubar

E por mais
Que você se esquivasse
Eu tinha certeza
Que no fim do baile
Na minha lambreta
Contente pra casa
Eu ia te levar

E ao chegar em tua casa
Em frente ao portão
Um beijo, um abraço
Minha mão, tua mão
Com medo que o velho
Pudesse acordar

A pílula já existia
Mas nem se falava
Pois nos muitos conselhos
Que tua mãe te dava
Tinha um que dizia
Só depois de casar

E tudo que a gente transava
Eram três, quatro cubas
Eu era a raposa
Você era as uvas
E eu sempre querendo
Teu beijo roubar

E por mais
Que você se esquivasse
Eu tinha certeza
Que no fim do baile
Na minha lambreta
Aquele corpo bonito
Ia me abraçar’.

Ora, esse texto retrata, exatamente, um momento verdadeiro dos anos 60, em que os namorados realmente driblavam os pais da moça, com artifícios os mais sofisticados.

Observemos esta passagem:

“A pílula já existia
Mas nem se falava
Pois nos muitos conselhos
Que tua mãe te dava
Tinha um que dizia
Só depois de casar” (…)
E tudo o que a gente transava
Eram três, quatro cubas
Eu era a raposa
Você era as uvas
Eu sempre querendo
Teu beijo roubar (…)”.

Ora, na época, havia o mito de que a moça só transaria com o namorado “depois de casar”. É óbvio que isso era mito, porque havia, como sempre haverá, em todos os tempos, as transgressões, mas os pais o alimentavam, ferrenhamente. Claro que, nos primeiros encontros, valia a metáfora da música: “E tudo o que a gente transava eram três quatro cubas”.

Com essa metáfora, o poeta (o compositor da música, que, infelizmente, não sei quem é) teve a nítida intenção de mostrar que, na época, a virgindade era um valor fundamental e inegociável. Ele não colocou esse verso, por acaso, apesar de a letra ser considerada “brega”.

Outra letra que acho fundamental citar, como retrato de uma época, é esta, imortalizada na voz de Nélson Gonçalves:

“Mas se fui pecador condeno a lua
Que abandonou a rua
E fugiu com o luar.
Pois ela adivinhando o meu desejo
Provocou aquele beijo
E assim me fez pecar.
Se impetuoso fui tem compaixão
E em nome do amor
Eu suplico teu perdão.
Perdoa meu amor este pecado:
Sublime impulso de te haver beijado”.

O beijo “roubado”, na época da música, era reprovado moralmente; tanto que o “eu lírico” considera um pecado; depois, na minha época, por exemplo, era considerado natural; e, até bem pouco tempo, considerado normal; hoje, pela nossa legislação, é “crime”. Mas a música cumpriu seu papel de retratar uma época; e ouvi-la vale tanto quanto – ou mais do que – uma aula de história, em qualquer escola.

E, pra encerrar, uma música imortalizada na voz de Fernando Mendes, que hoje, se executarem em alguma rádio, os “coletivos” vão cair em cima e, olhe olhe se não conseguirem cassar a concessão da emissora:

“Sentada na porta em sua cadeira de rodas ficava
Seus olhos tão lindos, sem ter alegria, tão triste chorava
Mas quando eu passava, a sua tristeza chegava ao fim
Sua boca pequena no mesmo instante sorria pra mim
Aquela menina era a felicidade
Que eu tanto esperei
Mas não tive coragem
E não lhe falei
E agora por onde ela anda eu não sei
Hoje eu vivo sofrendo e sem alegria
Não tive coragem bastante pra me decidir
Aquela menina em sua cadeira de rodas
Tudo eu daria pra ver novamente sorrir”.

Mas, apesar desse radicalismo idiota, ignorância cultural e intolerância, é o retrato de uma época, através da arte; há quer ser respeitado.

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