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Professor Trindade

Não posso falar sobre Marcos Tavares, sem lembrar aquela longínqua tarde de 1976, na redação de “O Norte”. Era eu pouco mais do que uma criança; sim, já tinha 19 anos, mas era quase uma criança nas atitudes. Tímido ao extremo, me tremi todo ao entrar na redação, o que me levaria a conhecer aquele que era o editor do caderno de cultura; mas, para mim, era o “monstro” com que eu tinha tido contato (pelos livros) ainda adolescente, ao ler uma antologia de contos publicados no Correio das Artes: “O Conto Paraibano”. Fiquei entusiasmado com o conto dele “Passar os anos”, cujo estilo achei parecido com o de Guimarães Rosa; mas era bem diferente: mais leve, mais gostoso de se ler.

Pois não é que agora aquele “monstro” estava na minha frente, lendo meu poema “Realidade”, vencedor de um concurso aqui, na Paraíba, realizado entre alunos do Ensino Médio de escolas públicas e privadas, e representaria a Paraíba no II Concurso Nacional de Poesia Falada, promovido pelo Governo do Estado da Bahia e Colégio Severino Viera, e realizado em Salvador, Bahia, em 07 de setembro de 1976?

Enquanto ele olhava, atentamente, o texto, eu tremia mais e mais…

Enfim, o poeta olha para mim e diz:

– Vou publicar.

Não acreditei no que estava ouvindo; principalmente porque tivera uma experiência, anteriormente, com outro editor do mesmo suplemento, que, além de me tratar com desdém, após ler meus poemas afirmou que eram “uma cópia de Manuel Bandeira”…O mais irônico é que, até então, eu jamais houvera lido o poeta pernambucano; conhecia apenas dois ou três poemas de antologia escolar. Lembro até os nomes: “A Estrela”; “Balada do Rei das Sereias” e “Última Canção do Beco”.

Justamente a partir do termo “irônico”, que nos remete, automaticamente, ao termo ironia é que vou tentar fazer uma análise da poética de Marcos Tavares.

Breve análise da poesia de Marcos Tavares

A poesia de Marcos Tavares tem uma grande carga de símbolos. O fazer poético dele transcende o universo puramente artístico e assume um compromisso com os valores sociais; nesse contexto, indivíduo e sociedade merecem a atenção do poeta, que usa sua palavra cáustica e irônica a serviço de uma crítica que às vezes chega ao sarcasmo, que é aparentemente “amortecido” pelo humor, que nada tem de “brincadeira”; ou de riso; mas sim, de advertência.

Podemos vislumbrar na produção dele uma simbiose do jovem poeta formado no formalismo, às vezes exagerado, das vanguardas e a linguagem simples e despojada do jornalista, o que dá à poesia dele um caráter singular que o diferencia dos demais da geração.

Justamente pelo que se enfatizou, pode-se vislumbrar na poética de Marcos dois momentos: um em que ainda está preso aos “ditames” das vanguardas – como bem enfatizou Sérgio de Castro Pinto, na “Coletânea de Autores Paraibanos” – e outro mais “solto”; sem dúvida, mais criativo, mais livre, em que passa a exercer, assim, sua poética da maturidade: a que, realmente, ficou.

Até mesmo em “Notícia de Jornal”, despretensioso em matéria estética e “pouco elaborado”, como destaca o poeta nas palavras introdutórias do livro, nota-se, por exemplo, no último seguimento do poema uma passagem que desmente, categoricamente, essa afirmação do poeta, tal o nível de elaboração; o que se nota, inclusive, pela lógica contextual do poema e a natureza do tema, encaixados com o máximo de concisão, como se vê no trecho a seguir:

(…)

A sacerdote jornaleiro

oficia a comunhão

e igual a um açougueiro

divide cada quinhão

recebendo a justa paga

da celebração.

O morto assim conduzido

entre papéis e axilas

desfila pela avenida

penetrando espaços

lhe fechados em vida.

À noite enfim se recolhe

a um cesto de papel

como um vampiro ao contrário

e repousa na paz do céu.

Mas o traço diferenciador mesmo da poesia de Marcos em relação aos da sua geração e até mesmo dos poetas paraibanos contemporâneos é a genialidade de colocar o social e o irônico-caústico dentro do lírico; o lirismo, aliás, outro traço marcante da sua poesia.

É verdade que não constitui novidade a lírica, o social e o irônico numa produção poética; mas em poemas distintos; diferentemente da poesia de Tavares, que, como já dissemos, faz uma simbiose desses traços, dentro de um mesmo poema.

Para provar o que acabamos de afirmar, tomemos o seguinte poema, de “Três Lições”:

a moça em alto contraste – 2

honrava pai e mãe até o dia

que o marinheiro atracou no seu porto.

o velho quase morre de desgosto,

mas a moça detestava a calmaria

desenrolou as velas e partiu

dançando um fox trote

arrancou a âncora do útero

e navegou em direção à vida

Observe-se que o poeta, com ironia e sarcasmo, ridiculariza os valores vigentes da sociedade da época, notadamente um muito caro em relação à família: a virgindade. A moça que perdia a virgindade “manchava” o nome da família, além de ferir a honra desta, perdia a própria; daí se dizer, popularmente, quando uma moça “se perdia” (=perdia a virgindade), que ela fora “desonrada”. O poeta, de forma debochada, ironiza, nos versos 1 e 2: “honrava a pai e mãe até o dia/ que o marinheiro atracou no seu porto”. Em outras palavras: a moça mandara às favas os padrões morais da sociedade vigente, entregando-se a um “aventureiro”: um marinheiro, que, na época, era um dos símbolos dos “desvirginadores”. Note-se que a moça sacrifica sua vida, a honra, despreza os “valores”, em nome do desejo; da paixão. Ainda que não entendamos a entrega como um ato de amor, havemos de reconhecer que há a entrega absoluta, em nome de tal sentimento. Algo mais lírico não há. Apesar de não podermos entender o poema como uma ode ao amor, o que ele realmente não é, fica óbvio que o texto é construído à base do lirismo, embora “embutido” na atmosfera da crítica social irônica e cáustica.

Dadosbiobibliográficos

Severino Marcos de Miranda Tavares nasceu no Ingá do Bacamarte, Paraíba, em 1948 e morreu em João Pessoa, em 22 de junho de 2020. Suas atividades literárias começaram na capital paraibana, a partir da criação do grupo Sanhauá, que reunia jovens poetas, pintores e xilogravuristas.

Foi jornalista destacado, tendo atuado nos mais importantes jornais da Paraíba e, também, no Rádio.

Obras:

Fuzuê e Finados (1963)

Dual dos Incriados (1964)

Agora, o pavão sem Mistérios (1979)

Notícia de Jornal (1980)

Algumas histórias e outros poemas (2000)

Lavoura de ossos (2005)

(Texto publicado, originalmente, no livro: “Paraíba na Literatura II”, editora A União, 2020, p.p. 64 a 66. Aqui, reduzido).

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