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Pacto de desconfian

Imagine a cena: uma onça corre célere pelos prados. O motivo da correria está poucos metros à frente, também em desabalada. O veado sabe que será logo atacado e devorado sem piedade.

Assistindo a tudo, está um casal.

A mulher diz: – Meu Deus, a onça vai pegar o veado. Por favor, amor, faz alguma coisa.

O homem responde: – Amor, isso é natural. Afinal, a onça também precisa se alimentar.

A mulher dá o xeque-mate: – Se você não salvar o veado, vou vasculhar seu WhatsApp.

Na cena seguinte, o homem já está no meio da correria, vencendo o ritmo da onça e enlaçando, heroicamente, o veado ameaçado. Fim do ato.

O vídeo que se tornou viral no Facebook é – obviamente – para sorrir. Trata-se de mais uma tentativa anônima de fazer graça – entre tantas que o bom humor brasileiro produz e prolifera nas redes sociais.

Mas o enredo embute, na verdade, uma sentença nada engraçada: a confiança virou artigo de luxo, e em franca escassez, entre as pessoas. Sejam nas suas relações amorosas, de amizade ou de trabalho.

E para os que pensam que o homem é o único a demonstrar que não merece confiança, deve avaliar que a mulher – e suas ameaças – também não é nada confiável.

No resumo dessa ópera tragicômica resta a certeza de que tanto o que escarafuncha quanto o que se esconde sob camadas de cadeados se desnuda reciprocamente. E assina embaixo desse pacto de desconfiança.

Pessoalmente, cultivo consciência profunda de que não se pode quebrar a privacidade alheia – mesmo quando o alheio dorme no outro lado da cama.

Sou de uma época e de uma geração em que as relações eram regidas, em princípio, pela confiança. E os pactos,quando firmados, eram para valer.

Se havia o meu e o seu espaço, esses eram terrenos que podiam (de forma consentida) ser partilhados.

Senhas para quê?

Hoje é possível tornar quase verossímil a decisão do cônjuge de se interpor entre a onça e sua presa para escapar do exame do celular e das informações protegidas por códigos secretos intrincados.

Pode parecer ingênuo ou pré-histórico, mas penso mesmo que se um casal precisa agir assim, essa relação está destruída.

A desconfiança a corroeu.

Sentimento que também minam outras esferas do comportamento neste início de novo milênio.

No trabalho, por exemplo, atos de coleguismo não raro são interpretados como tentativa de rasteiras. O que deveria ser recebido como grata ajuda se transforma, ante olhos desconfiados, no bote que antecipa o ataque.

Empregadores e empregados também se olham com desconfiança.

Será que ele está se locupletando com algo indevido?- Pensa o patrão.

Será que ele está planejando me substituir?- Imagina o empregado.

E eu pergunto: será que existe confiança entre eles?

Claro que não. Aparentemente, a confiança está em falta em todas as esferas do comportamento humano.

Foi substituída por um quase acreditar, um quase confiar. O que redunda neste pacto de desconfiança que dá sobrevida às relações humanas.

Até acredito que o bem querer e o gostar permaneçam morando no coração desse homem contemporâneo. Mas o risco desses sentimentos serem tragados pela desconfiança é mais iminente do que o do veado que corre à frente da felina esfomeada.

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