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‘Tive dificuldade com Exatas’, diz paraibana que faz pós-doutorado na NASA aos 32 anos

Depois de dificuldades no ensino médio, Raissa Estrela se encontrou na Física e está nos EUA

O levantamento mais recente feito pelo Open Box da Ciência, divulgado em 2020, aponta que o Brasil tinha pelo menos 77,8 mil pesquisadores nas cinco maiores áreas do conhecimento, que são linguística, letras e artes; engenharias; ciências sociais aplicadas; ciências exatas e da terra; eciências da saúde. Entre eles, 46.501 ou 59,69% são homens e 31.394 ou 40,3% são mulheres. Nesse número, está a pesquisadora paraibana Raissa Estrela, que trabalha na Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço (NASA), em Pasadena, no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, país onde mora há dois anos e faz pós-doutorado, com 32 anos.

Raissa começou a graduação em Física Bacharelado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte aos 18 anos, em 2010, e concluiu em 2014. Também possui graduação sanduíche pela Universidade de Toronto, no Canadá (2013). Ela fez Iniciação Científica em Astronomia Estelar, com ênfase em Exoplanetologia e Análise de parâmetros físicos de estrelas do CoRoT e Kepler, com orientação do professor José Renan de Medeiros (UFRN). A jovem concluiu o mestrado em Ciências Geoespaciais e Aplicações no Centro de Radioastronomia e Astrofísica na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em Recife (PE), com orientação da professora Adriana Valio, aprovada. Ela atua nas áreas de exoplanetologia e astrobiologia. Raissa é o destaque da última reportagem da série ‘Quem Estuda Vai Longe!’.

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Raissa Estrela faz pós-doutorado na NASA, aos 32 anos (Foto: Arquivo pessoal)

Raissa também é um dos “cérebros” que deixa o Brasil para poder desenvolver pesquisas e trabalhos científicos. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) informou ao Portal Correio que não há dados que indiquem quantos brasileiros deixaram o país recentemente para seguir a vida acadêmica no exterior, mas a entidade afirma que há uma percepção de alta nessa migração nos últimos anos, devido a questões que podem estar relacionadas à diminuição da oferta de bolsas e incentivos.

Um recorte da situação difícil enfrentada pela pesquisa científica no país é o que vem ocorrendo no Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que é uma fundação pública, ou seja, um órgão privado criado por ato legislativo para funções públicas, responsável por fomentar a pesquisa e o desenvolvimento científico no país.

“A partir de 2016, o CNPq vem sofrendo uma ostensiva ação de estrangulamento financeiro e desmonte de sua atuação. Desde então, infelizmente tornam-se lugar comum a redução de quadros de funcionários, a falta de investimento na manutenção e expansão dos sistemas computacionais, além da falta de orçamento para o exercício de sua missão: a execução dos programas de fomento à pesquisa científica”, divulgou a SBPC em carta aberta em defesa do CNPq.

No Twitter, o projeto anônimo ‘Diáspora Científica do Brasil’ criou um site que mapeia cientistas brasileiros no exterior. As atualizações mais recentes na rede social são de janeiro deste ano. No site, 1,5 mil estudantes e pesquisadores são listados por terem deixado o país para dar continuidade à carreira acadêmica. Raissa Estrela aparece na lista.

Da Paraíba para a NASA

Raissa entrou no pós-doutorado no Laboratório de Propulsão a Jato da NASA aos 31 anos e integra uma equipe que descobriu recentemente que há uma atmosfera em um planeta rochoso, que tem a mesma idade, densidade e o mesmo tamanho que a Terra, mas que tem uma trajetória evolutiva diferente. A descoberta sobre o planeta GJ 1132 b, fora do Sistema Solar, é um passo importante e precioso nos estudos sobre vida fora da Terra.

Laboratório de Propulsão a Jato da NASA (Foto: Reprodução/www.jpl.nasa.gov/virtual-tour/)

Pela tese de doutorado que analisa a atmosfera de planetas fora do Sistema Solar, a jovem cientista também recebeu, em maio deste ano, o prêmio da União Astronômica Internacional. A entidade é referência na área e tem membros em 106 países.

Antes do topo, a subida íngreme

Para chegar a tão alto posto dos estudos científicos, Raissa passou por desafios que vão desde “aos altos e baixos” na época do colégio, até a falta de incentivos para seguir com o que desejava. Natural de João Pessoa, ela lembra que não era a “melhor aluna da classe”.

“Eu nunca fui uma aluna exemplar durante o meu colegial, eu tive altos e baixos, e sempre tive dificuldades com as ciências exatas, como Matemática e Física. Esse cenário mudou quando eu decidi que queria prestar vestibular para Ecologia ou Física (estava indecisa na época). No meu último ano de ensino médio eu decidi estudar a fundo as ciências exatas e melhorar meu desempenho”, disse.

Até decidir o que queria para a vida profissional, Raissa conta que fazia leituras, participava de eventos, identificou referências e foi encontrando sentido no que mais gostava.

“No ensino médio eu comecei a me interessar bastante por astronomia e por ecologia, e procurava ler bastante sobre assuntos nessas áreas, como também procurava participar de eventos em astronomia para me inserir mais nesse mundo. Quem me levou a ficar fascinada pela astronomia foi o astrônomo e divulgador científico Carl Sagan. Lembro que um professor de história trouxe o livro do Sagan ‘O Mundo Assombrado pelos Demônios’ para a sala de aula, e eu li o livro logo em seguida. Sagan não apenas era um reconhecido astrônomo, como também sempre tocava em assuntos de relevância como ‘mudanças climáticas’ em seus livros, e o quanto é importante cuidarmos do nosso planeta também. Eu me conectei completamente com Sagan porque, assim como ele, eu acho que é importante desvendarmos os mistérios do universo e entendermos mais sobre os cosmos, mas sem esquecer que também temos que preservar a nossa casa, o planeta Terra, que abriga tantas formas de vida, e até então é um lugar único no nosso universo”.

Importância do apoio da família

Para fazer as escolhas, Raissa conta que teve todo o apoio da família e que não sofreu pressões para que seguisse o caminho da forma como desejava. “Minha família nunca interferiu nas minhas decisões, pelo contrário, eles sempre me apoiaram. Eu imagino que eles sempre se preocuparam com o meu futuro como cientista, pois temos que depender de bolsas durante grande parte da carreira e o mercado de trabalho não oferece muitas oportunidades. Mas nunca foram contra minhas decisões ou disseram para eu desistir”.

Luta contra o machismo

Raissa relata episódios de machismo que precisa enfrentar durante a carreira e o quanto isso ainda é um empecilho no caminho de muitas mulheres.

“O machismo está impregnado em nossa sociedade e apesar de nós mulheres estarmos nos inserindo cada vez mais nas ciências e tecnologias, é ainda ‘normal’ ter vários momentos em nossa carreira onde vivenciamos o machismo. Também presenciei muitas falas machistas, como por exemplo, colegas julgando a roupa da professora de um dos nossos cursos. À medida que fui avançando na carreira científica também fui me deparando cada vez mais com o machismo, fui vendo que nosso trabalho é muito mais questionado do que o dos outros colegas e que muitas vezes nos sentimos mais intimidadas em falar ou questionar, pois infelizmente, em geral, nós mulheres somos educadas a escutar e cuidar mais do que se indagar e posicionar”.

Tempo para ‘fazer nada’

Nem tudo são estudo e pesquisa. Em meio à oferta demasiada de produtos e serviços de entretenimento na palma da mão, Raissa conta que também reserva tempo para não fazer nada e se distrair.

“É muito comum ter os momentos de procrastinação, ainda mais agora com tanto acesso às notícias e às redes sociais. Eu tento reservar o meu tempo de procrastinação, como a hora do almoço por exemplo, ou para a noite após o dia de trabalho. Também tento estabelecer metas para cada dia, porque isso me ajuda a focar e não procrastinar.  Mas claro que sempre tem uma recaída e quando menos espero estou lendo algum jornal para acompanhar as notícias no Brasil ou checando o Twitter”.

Aprendendo com os erros

A jovem cientista não tem medo de encarar os erros que já cometeu enquanto tentava alcançar os objetivos e relata como teve que fazer para superá-los e utilizá-los como instrumento de crescimento e aprendizado.

“Tem várias situações que surgiram ao longo da minha carreira. Cada estágio na carreira traz as suas dificuldades e desafios. Por exemplo, aplicar para uma bolsa de pesquisa e não ser contemplada foi um deles. Também aconteceu várias vezes de alguma pesquisa que eu estava conduzindo ter demorado demais para produzir resultados. Ou de me decepcionar com algum seminário que dei em uma conferência, pois não saiu como eu esperava. Ou de me deparar com algum problema que achava que havia resolvido, mas na verdade não era bem o que pensava. Apesar de parecer frustrante, é com os erros que a gente aprende mais e evolui. Além de, claro, ter bastante persistência”.  

Fazendo dos desejos coletivos os sonhos pessoais

Raissa não limita os sonhos às aspirações pessoais. Como cientista, ela coloca na frente as necessidades da comunidade, da população, e enxerga como sonhos o que é bom para os outros, não só para ela. Igualdade de oportunidades e cuidados com a Terra estão entre esses desejos.

“Os estudos e a dedicação foram fundamentais para chegar até onde estou em minha carreira, mas sonhos para mim vão muito além do que tenho atualmente. Sonho para mim é ver uma sociedade que ofereça as mesmas oportunidades para todos, não importa gênero ou cor. É ver a ciência ser tratada como fundamental para o avanço do nosso país e com mais oportunidades para todos, principalmente às mulheres e LGBTQ+. E ver nossa civilização cada vez mais perto de detectar vidas em outros mundos, mas sem esquecer que a vida aqui na Terra é preciosa e que precisamos respeitar as demais formas de vidas não-humanas. Portanto, minha perspectiva para o futuro é a de poder contribuir para que cada vez mais esse sonho se torne realidade um dia”.

‘Uma excelente aluna’

A professora Adriana Valio orientou Raissa no mestrado que a estudante começou em 2015. Valio é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências e Aplicações Geoespaciais e coordenadora da área de Astronomia da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Ela não poupou elogios à jovem paraibana.

“Ela defendeu o mestrado em fevereiro de 2017 e logo em seguida deu início ao doutorado, o qual defendeu em setembro de 2020. Graças a uma bolsa da FAPESP de doutorado, pôde fazer um estágio no exterior. Embarcou para o Jet Propulsion Laboratory (JPL/NASA, Califórnia, EUA) em setembro de 2018. Desde o início percebi que Raissa tinha muita determinação e iniciativa”.

A professora lembrou ainda detalhes da determinação de Raissa em correr atrás do que sempre quis e precisou. “No meio do mestrado, ela publicou o primeiro artigo em um dos melhores periódicos internacionais de Astronomia. Quando os resultados estavam prontos, ela já chegou com o artigo praticamente todo escrito. Tanto durante o mestrado quanto no doutorado, Raissa sempre teve a iniciativa de procurar congressos para apresentar trabalho no exterior e muitas vezes conseguiu verba para custear viagens”.

Segundo a professora, os resultados do trabalho de Raissa são tão promissores que um cientista norte-americano se prontificou em manter uma bolsa por conta própria. “A bolsa da FAPESP dá direito a um ano no exterior, e o estágio no JPL/NASA foi iniciativa dela. Escolheu o local e entrou em contato com o Dr. Mark Swain, o qual concordou em supervisioná-la. Aliás o Dr. Swain ficou tão satisfeito com o seu desempenho que se prontificou a pagar mais seis meses de bolsa com verba própria para que ela continuasse a pesquisa. Desde a entrevista para o ingresso no Mestrado, percebemos que se tratava de uma excelente aluna (aliás, ela já tinha participado de uma publicação internacional)”.

‘Inteligência acima da média’

A professora Adriana não tem dúvidas sobre a capacidade especial de Raissa. ‘A inteligência dela é bem acima da média, obteve notas máximas em todas as disciplinas cursadas (6 do mestrado mais 4 do doutorado), sempre se destacando como a melhor aluna”.

Valio destaca também o poder de iniciativa de Raissa. “Outra característica que considero muito importante para o sucesso dela é a iniciativa e a determinação. Ela sempre correu atrás do que queria, procurando artigos para leitura, participação em congressos internacionais e propondo novas ideias sobre a pesquisa”.

Orientações para quem quiser seguir os mesmos passos

Raissa orienta que para escolher uma carreira é importante que o jovem comece a pesquisar cedo sobre áreas do conhecimento. Ela também considera necessário se envolver em projetos e atividades no ensino médio que ajudem a indicar um caminho profissional. Porém, se a escolha não for a certa, ela fala que sempre há tempo para mudar de ideia.

“Acho que é importante tentar buscar mais informações sobre a vida profissional que se quer seguir ainda no ensino médio, e tentar se envolver com projetos na área de interesse com a ajuda e apoio de professores e colegas. Eu tenho uma aluna de ensino médio aqui nos EUA que eu a oriento, e ela atualmente está envolvida com vários projetos na área de física e biologia para se decidir do que gosta mais. Também acho que é muito importante se planejar e ver quais são as universidades que têm grupos de pesquisa na área que se quer seguir e quais são as oportunidades oferecidas na carreira de interesse. Como também é importante tentar se comunicar com profissionais já avançados na carreira, pois eles podem esclarecer quais são as dificuldades e oportunidades na área de interesse. Mas se a escolha não foi o que se pensava, isso não é o fim do mundo. É possível mudar de áreas. Eu mesma comecei meus estudos em Ecologia e depois transitei para a Física”.

VÍDEO: Raissa dá dicas para quem quiser voar alto nos estudos (vídeo/arquivo pessoal)

A professora Adriana Valio orienta sobre a necessidade de se aguçar a curiosisade e de não desistir dos objetivos. “Aconselho os jovens a terem muita perseverança e nunca perderem a curiosidade que é uma característica imprescindível para qualquer pesquisador. Acredito que oportunidades sempre aparecerão para aqueles que se destacarem nos estudos”.

Os problemas com a educação no Brasil

Valio acredita que a educação do Brasil tem capacidade para acolher jovens talentosos e inteligentes, mas aponta a falta de atrativos como entrave para a carreira científica. “Não há muitos atrativos para os jovens escolherem carreira em ciência, dada a escassez de bolsas e o baixo valor. As bolsas de pós-graduação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) não recebem reajustes há muitos anos e os valores não são nada competitivos, portanto, os melhores alunos acabam escolhendo outras profissões”.

A professora lamenta ainda a ‘fuga de cérebros’, que foi uma abordagem da jornalista Amanda Gabriel em uma das reportagens da série ‘Quem Estuda Vai Longe!’. “Infelizmente outro fato bem comum é a fuga de cérebros para o exterior, os alunos que se destacam e conseguem sair do país geralmente acabam empregados em instituições de pesquisa de ponta do exterior com condições muito melhores para pesquisa”.

Valio destaca que em países ricos há uma atenção mais especial para a pesquisa e para os trabalhos científicos. “Sem falar no forte investimento à pesquisa de países como EUA e os países mais ricos da Europa, as condições de emprego acabam sendo bem melhores. Aqui no Brasil, na situação atual, além de precária com relação a investimentos, praticamente não há oferta de vagas/concursos de empregos para pesquisadores nas universidades ou institutos de pesquisa”, finalizou.

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