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A rotina de um Natal que ultrapassa o 25 de dezembro

“Vocês podem gravar com alguns deles, a condição é que precisamos ver quais têm condição de falar, uns já estão muito debilitados. Também temos que respeitar o posicionamento das famílias”. Era manhã de uma segunda-feira quando a Irmã Joilma, cuidadora dos idosos do Instituto São Vicente de Paulo, em Campina Grande, deu o aval para que o Portal Correio gravasse com eles sobre a temática do Natal.

Combinamos um retorno para a quarta-feira da mesma semana, pergunto se Chico, fotógrafo do CORREIO, poderia tirar umas fotos. Mais um aval é concedido. A gravação teria que ser pela manhã, durante o horário de visitação do instituto, que ocorre das 9h30 às 10h30, por cuidado, algo pertinente no local.

Quando a quarta chegou, às 9h30 em ponto entramos no local. Uma das recepcionistas ligou para a Irmã Joilma que liberou a entrada no espaço reservado para os idosos. Fomos acompanhados para um lugar com um coreto central e umas partes arborizadas. Vários idosos estavam espalhados, alguns sentados nos bancos do coreto, outros nos corredores da casa, na sala de estar… A princípio, eram as pessoas mais perceptíveis.

Maioria dos idosos do instituto têm dificuldade para se comunicar com coerência (Foto: Chico Martins / Jornal Correio)

Acompanhar dezenas de idosos não parece ser uma tarefa simples, lidar com 73 pessoas em estado de extrema atenção exige dedicação, mas não é um “lidar” com sinônimo de “aturar”, porque se trata de responsabilidade. O trabalho no Instituto São Vicente de Paulo tem uma trajetória desde 1931 quando ainda se chamava Azilo Deus e Caridade.

Após cinco anos, quando as freiras da Congregação Filhos da Caridade São Vicente de Paulo assumiram os trabalhos, o instituto se fidelizou. Ele nem sempre foi localizado às margens do Açude Velho, cartão postal da Rainha da Borborema, mas no ano de 1936 passou a ser.

Se somado, resulta em 82 anos de cuidados com idosos que não têm para onde recorrer. Há muitos anos a Irmã Joilma faz parte, foi ela quem nos recebeu desde a tentativa de marcar a gravação. Foi atenciosa do momento que chegamos ao que partimos.

Ela não parecia estar preocupada em causar boa impressão. Todo o tempo que passeava com a gente estava de olho nos idosos. Atenção priorizada para onde já aparentava ser de acostume. Sendo assim, toda pausa para falar sobre ela também é falar sobre o que o instituto representa.

(Foto: Chico Martins / Jornal Correio)

Encontrar Joilma não foi difícil, estava conversando com uma das idosas sentadas em um sofá da sala. Quando notou a aproximação, foi ao nosso encontro. Apresento o fotógrafo e após os cumprimentos, ela diz: “Precisamos procurar quem pode participar, vai ser um pouco complicado, mas a gente encontra. Com quantos vocês esperam falar?”, respondo que o que der, já nos ajuda.

Rapidamente ela começa a passear entre os idosos, seguimos atrás. Por alguns ela passava direto, em outros chegava a perguntar se poderiam conversar com a gente. As duas primeiras mulheres negaram, alegando não querer. “Não gosto de falar sobre o Natal, senão eu choro”.  Soltou uma. Em respeito, era hora de respirar fundo, agradecer e partir para outras pessoas. Tinha sido o primeiro impacto.

Após outras três tentativas, entre elas mais uma negada, aguardamos uma senhora vestir uma roupa especial. Segundo a freira, ela gostaria de estar apresentável. Joilma sempre mediava o pedido para as entrevistas, sabia exatamente com quem e como abordar. Só nos restava torcer.

José Diniz

Ao passo que esperávamos a senhora que queria estar bem apresentada, conseguimos sentar com um dos idosos. Lá estava José Diniz, pedreiro e motorista, 72 anos. Cadeirante. “Eu vim ao mundo com boca foi para falar!”, primeira coisa que profere. Na sequência, sorri. O segundo impacto foi surpreendentemente bom.

José já está há mais de um ano no São Vicente de Paulo. Disse não saber o tempo com muita exatidão. Nem parecia estar muito preocupado com isso, mas fez algumas tentativas durante a conversa. Liguei o gravador e perguntei o que significa o Natal para ele. “O Natal significa dizer que é uma data festiva do nascimento de Jesus, que a gente sempre comemora com uma grande solidariedade uns para com os outros”, disse.

José Diniz está há mais de um ano no instituto São Vicente de Paulo (Foto: Chico Martins / Jornal Correio)

“O senhor acha que o Natal é celebrar o amor? Celebrar a vida?”, questiono. “Depende de cada um que tiver um bom coração para com os outros, que não tenha má intenção. E não adianta celebrar com sentimentos ruins dentro de você”. Havia sido o terceiro impacto.

Não questionei. O homem toma a frente e começa a falar um pouco de sua história. “Já está com alguns anos que eu vim de Esperança [município localizado a 26km de Campina Grande], eu já estava na cadeira de rodas, sabe? Cheguei aqui e eu continuei nessa penitência de estar na cadeira, mas se Deus quiser eu vou voltar a andar logo, logo”. Eu e Chico concordamos. Hora de parar de contar os impactos, esse foi mais um de muitos para somar.

“Eu estudei quatro anos na UFCG, estudava cursinho para a preparação do Enem, eu dei uma moleza danada, se eu te disser que o meu currículo foi perdido você tem que acreditar. Eu perdi o certificado do primário, do ginásio e do científico. Um cara fez uma mudança na casa que era dos meus pais e jogou tudo no lixo”, lamentou.

“Eu cheguei da minha terra de 56 para 57, vamos supor que é só o camarada somar a data do meu nascimento, com a data que eu vim pra cá, daí o camarada sabe há quantos anos eu vim aqui para Campina”. Se esforçava e sorria.

Peço para Chico tirar uma foto dele com toda aquela alegria, não queria deixar escapar. Chico regula a câmera e aponta para ele, certa timidez resplandeceu no rosto do idoso. Olhou para o fotógrafo, olhou para o bloco de anotações no meu colo, depois vira os olhos, desconfiado, na direção da câmera. Pedi para que sorrisse novamente. No fim, ele não hesitou.

O cadeirante espera o dia que voltará a andar (Foto: Chico Martins / Jornal Correio)

Em seguida, perguntei se ele gostaria de fazer algum pedido neste Natal. “Olhe, o pedido de Natal que eu tenho para fazer é que Deus recupere a minha saúde porque ele é poderoso para que eu saia daqui e siga meu destino, destino de motorista. Ser pedreiro eu não quero mais não, é uma profissão muito pesada, só se for pra eu dar algum plano de construção para continuar”.

Ele continua “desenfreado”. “Essas duas profissões eu vim misturando, trabalhava um pouquinho de motorista e depois um tempo como pedreiro, depois como motorista e depois como pedreiro, mas eu sou pedreiro de construtora, não é de retoque, era profissional”, explicou e orgulhou-se.

José Diniz tem os dedos polegar e anelar do pé direito amputados. Em um momento, olhou para os pés de repente, relatando que tinha machucado os dedos e nunca sararam. “Mas quando eu vi que não tinha condição de curar e vim para cá, foi o melhor a se fazer, [amputar] agora só falta eu andar”.

Perguntei se ele é casado, se tem filhos. Ele diz que sempre foi solteiro. “Mas namorou muito!”. Chico brinca. José gargalha. Percebemos que ali se dava o fim da conversa. Ainda pedi para que ele contasse alguma história que pudesse ter passado em algum Natal, mas ele alegou não ter. Desliguei o gravador e agradecemos.

Ficamos felizes, já que conseguimos conversar com um deles, acabávamos de conhecer José Diniz. Era perceptível que ele estava feliz em dobro. Desejou que pudéssemos ir embora com Deus e que voltássemos em breve.

Vilma Geralda de Araújo

A Irmã Joilma disse que a mulher que tinha ido trocar de roupa havia passado mal, resolveu se deitar. Compreendemos. Logo, Vilma Geralda, de 86 anos, chegou. A freira disse que era com ela que a gente ia conversar. Comemoramos!

Fomos até a mesa da sala de estar, a senhora se acomodou e pediu que ficássemos à vontade. “Sou natural de Campina Grande. Nasci em 23 de maio de 1932”, responde à minha pergunta. “Em que ano estamos?”, questiona em seguida. “2018”, respondo. Ela sorriu. Pareceu envergonhada por não saber.

“O Natal, religiosamente, é o nascimento de Jesus, traz aquela história toda. Dentro disso, tem o interesse comercial e a gente vai se envolvendo. É uma coisa que faz parte da vida da gente, acho que desde a hora que a gente nasce que temos o natal da gente, não é? A gente também nasce”. Ela havia começado a falar sobre Natal.

Chico pediu para que ela se afastasse um pouco da cadeira, para ajudar na hora de tirar a foto. Ela pede desculpa, ele faz questão de dizer que não havia nada a se desculpar, pediu que ela ficasse à vontade. Ela ficou. Estava em casa.

Vilma Geralda (Foto: Chico Martins / Jornal Correio)

Pergunto se é o primeiro Natal que ela irá passar no instituto, Vilma franze a testa, fala em tom de surpresa: “Não! Imagina… Primeiro nada…”. Ela passou a mão no cabelo e jogou para trás, tentou lembrar a data e respondeu de forma incerta: “Olha, não sei te dizer o tempo que já estou aqui, mas não é a primeira vez”.

“Há alguma história de Natal que a senhora queira compartilhar com a gente?”, perguntei. Ela pediu para repetir a pergunta. Dei exemplos, Chico me ajudou, falou do Natal em família. Ela rapidamente expôs: “Ah, sim! Veja, na minha casa a minha mãe era evangélica, o meu pai era católico, mas a gente ficava à vontade, não havia choque e nem nada. Só que nunca houve nada demais, tudo com muita alegria, felicidade… Meu pai era muito bom, trazia as coisinhas pra gente, minha mãe ajeitava a casa; eram bobagens assim, nunca houve nenhuma coisa que possa falar que foi diferente”.

“Não precisa ser diferente, isso já é um relato de Natal”, respondo. Vilma abre um sorriso. Puxei para a história de vida dela, ao passo que se empolgou. “Eu trabalhei no comércio, era secretária. Eu fiz contabilidade, mas nunca trabalhei como contadora. Eu era honesta e direitinha, daí os meus patrões só me queriam no caixa, contando os dinheiros, eu me aborreci porque não tive oportunidade de crescer na empresa, só queriam que eu tomasse do caixa, mas era confiança em mim. Eu fazia direitinho”.

(Foto: Chico Martins / Jornal Correio)

Assim como José, Vilma também não casou e não teve filhos. Lembra-se do irmão que ainda tem, o aparente incômodo no assunto não durou. Peço para que ela olhe para a câmera para tirar uma foto e encerrarmos. Ela solta: “Fiquem à vontade! Passem o dia aqui… Por mim, vocês podem passar”. Abrimos três sorrisos e desliguei o gravador. Chico tirou a última foto.

Antes de nos despedir, a Irmã Joilma não encontrou mais ninguém que estivesse em condições de conversar. “Acho que vocês só vão conseguir falar com esses”. Repetia enquanto procurava mais gente. Aceitamos que as duas conversas haviam sido mais do que suficiente. Eram duas pessoas cheias de vida. Tem coisa mais natalina do que essa?

Havia um objetivo quando fomos até o São Vicente de Paulo, que não deixou de ser cumprido devido à quantidade de pessoas que falaram ou mesmo no que foi dito. No fim, esses relatos não são sobre um dia fora de uma redação.

O que foi relatado é sobre Natal, sobre um lugar entre tantos onde a essência natalina é prezada todo o ano. Dos 29 homens e 44 mulheres que estão nas mãos de quem os fazem reflexo de força, assim como aqueles que contribuem com doações e são voluntários. Sobre diferentes tipos de famílias a se considerar. Do início ao fim, é sobre ter um verdadeiro espírito natalino.

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