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Como a Lei Rouanet coloca R$ 1,2 bi por ano em cultura no Brasil

A extinção do MinC (Ministério da Cultura) e incorporação ao recém-criado Ministério da Cidadania deve levar a uma “auditoria” nos projetos culturais aprovados pela Lei Rouanet, segundo declarou esta semana o futuro ministro Osmar Terra.

Prestes a completar 27 anos, a Lei Rouanet enfrenta um dos maiores desafios de sua história: superar as polêmicas e a desinformação para manter o nível de incentivos fiscais na cultura acima de R$ 1 bilhão por ano.

Produtores culturais, advogados e especialistas em leis de incentivo entrevistados pelo R7 afirmam que o desafio é mostrar que os valores investidos pela lei retornam para a sociedade em forma de impostos, empregos e, claro, cultura e patrimônio histórico.

“A lei não é só importante, mas fundamental para o segmento produtivo”, afirma Bianca de Felippes, produtora de teatro e cinema e diretora da APTR (Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro).

“Desde que a lei surgiu, o orçamento da cultura foi diminuindo e a importância da lei foi aumentando. A gente ficou cada ano mais dependente do incentivo para poder realizar os projetos e manter as instituições. Isso sem contar na recuperação e conservação do patrimônio cultural”, diz.

Proposta pelo então secretário de Cultura Sérgio Paulo Rouanet, a lei entrou em vigor em dezembro de 1991 com a seguinte ideia: autorizar pessoas físicas e empresas de grande porte a deixar de pagar uma pequena parte do imposto de renda devido à União para investir em projetos culturais previamente autorizados pelo MinC.

Diplomata de carreira, Rouanet trabalhou no Itamaraty entre janeiro de 1957 e março de 1991, quando era embaixador na Dinamarca e foi chamado pelo então presidente Fernando Collor para o cargo de secretário de Cultura da Presidência da República — órgão criado após o então presidente extinguir o MinC.

Considerado um intelectual progressista, Rouanet foi responsável por desenvolver a lei que leva seu nome em substituição à Lei Sarney, eliminada pela gestão Collor. Ele deixou o cargo em outubro de 1992, em meio ao processo de impeachment de Collor, e retomou a carreira diplomática.

“Quando o Sarney propôs essa lei de incentivo à cultura, era no mesmo formato da Lei Rouanet, mas sem estrutura definida. Não tinha mecanismos de controle, de prestação de contas, então ela teve vida curta. O Rouanet retomou essa lei e criou uma estrutura, corrigindo os erros do passado”, diz Ana Ferguson, especialista em leis de incentivo, professora no MBA e nos cursos de pós-graduação da ABGC (Associação Brasileira de Gestão Cultural), ligada à Universidade Cândido Mendes, além de consultora em projetos culturais e produtora executiva.

“Cultura é um bom negócio”

Hoje, os incentivos da Lei Rouanet mantêm instituições como a Orquestra Sinfônica Brasileira, a Fundação Cultural de Araxá, o Museu do Amanhã, o Instituto Tomie Ohtake, o Instituto Inhotim, o Museu Judaico de SP, a Pinacoteca, o MAM/SP e o Masp, todos entre os 20 maiores captadores de 2018 — lista que deve se alterar porque o maior volume de recursos entra em dezembro.Exposições culturais também são viabilizadas com recursos vinculados à lei. No ano passado, a Art Unlimited foi a quarta empresa que mais captou (R$ 14,6 milhões), para financiar três exposições: Mondrian e Movimento de Stijl, Abraham Palatnik e Jean-Michel Basquiat.

Um dos casos recentes destacado pelo MinC é o da Flip 2018 (Festa Literária Internacional de Paraty), cujos impostos gerados foram superiores aos recursos incentivados pela Lei Rouanet. Estudo feito pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) mostrou que o evento, com orçamento total de R$ 3,5 milhões (sendo R$ 3 milhões via isenção fiscal e R$ 500 mil de outras fontes), gerou à União receita de R$ 4,7 milhões em impostos, além do impacto de R$ 47 milhões na economia, com movimentação de hoteis, restaurantes e do turismo local.

 “Antes da Lei Rouanet a produção cultural não tinha incentivo, era produção cultural de passar o pires na mão. Tínhamos produções amadoras, com exceção de grandes projetos que já vinham com apoio da iniciativa privada”, conta Ana Ferguson.

“A Lei Rouanet hoje é responsável por orquestras, museus, festivais, com 100% das programações totalmente dependentes da lei porque não temos política para a cultura”, diz Bianca de Felippes, da APTR.

Uma das principais mudanças na lei aconteceu em 1995, quando o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso adotou o slogan “cultura é um bom negócio”. O número de projetos aprovados passou de 69 para 2.552 no ano seguinte, colocando também em outro patamar os valores aprovados e os efetivamente captados pelos produtores culturais.

O setor que mais recebe incentivos pela lei, por exemplo, é o das artes cênicas, que inclui teatro, dança e circo, entre outros projetos — foram R$ 4,5 bilhões recebidos desde 1993, ou 25% dos R$ 17,6 bilhões incentivados pela lei até hoje.

Dados levantados pela APTR apontam que todo o setor cultural, com um incentivo estimado em R$ 1,4 bilhão por ano (somando Lei Rouanet e a Lei do Audiovisual), gera mais de 1 milhão empregos em 260 mil empresas.

Em comparação, a renúncia fiscal para a indústria automobilística, que vai saltar de R$ 2,3 bilhões em 2018 para R$ 7,2 bilhões no ano que vem, beneficia 31 empresas, geradoras de 245 mil postos de trabalho.

Como funciona a captação

Na prática, não é o governo federal quem investe os valores nos projetos culturais, mas, por meio do MinC, o governo seleciona os projetos que poderão ir ao mercado captar os recursos. A decisão de patrocinar ou doar o dinheiro, portanto, é sempre do investidor.

Produtores culturais e investidores (que podem ser pessoas físicas ou empresas sob regime do lucro real) devem seguir uma série de regras para utilizar os recursos do imposto de renda. No caso das empresas (responsáveis por 98,5% dos investimentos), apenas 4% do imposto devido pode ser utilizado — ou seja, pelo menos 96% do imposto de renda dessas companhias será pago à União. O valor que deixará de ser pago depende do tipo de projeto. No caso de música erudita, por exemplo, até 100% pode ser “devolvido”. No caso de música popular, o retorno será de até 30% do patrocínio.

À medida que o dispositivo se tornou conhecido, mais artistas e instituições passaram a utilizá-lo para buscar incentivo: a lei aprovada pelo Congresso não impede nenhum artista de pedir incentivo, seja ele de renome ou iniciante.

Com maior interesse da classe artística, mais empresas também passaram a colocar parte de seu imposto de renda em projetos culturais. Desde 2006, pelo menos 3.000 projetos recebem anualmente recursos via Rouanet. Em valores, o incentivo é de R$ 1,2 bilhão por ano desde 2010, na média.

Lucas Martinez/R7

Grandes projetos

Além de instituições, festivais e exposições culturais, os grandes musicais também entraram nos últimos anos na lista dos grandes captadores. Em 2017, a T4F (Time For Fun) foi quem mais levantou recursos, com R$ 16,4 milhões para duas produções: Os Miseráveis e O Fantasma da Ópera.

Crítico da lei, o presidente eleito Jair Bolsonaro afirmou em setembro, pelo Twitter, que defende incentivos à cultura, mas somente para artistas iniciantes.

“Incentivos à cultura permanecerão, mas para artistas talentosos, que estão iniciando suas carreiras e não possuem estrutura. O que acabará são os milhões do dinheiro público financiando ‘famosos’ sob falso argumento de incentivo cultural, mas que só compram apoio! Isso terá fim!”

Para Ana Ferguson, “agora é hora, com o novo governo, novos técnicos, sentarem e analisarem a lei. Ela pode ser renovada, pode ter novos percentuais, novas travas”, diz. “Eu só espero que o novo governo tenha visão ampla sobre a cultura, que dê este olhar cuidadoso para a área da cultura e que coloque na pasta profissionais técnicos e competentes”, finaliza.

*Diego Junqueira, do R7
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