Mestre e professor aos 26 anos faz 2ª graduação e cria tecnologia contra cáries

Antes de voar alto, Davi Clementino chegou a ser reprovado em quatro vestibulares e conta como superou fracassos

Estudar nunca foi uma tarefa fácil. Dedicar tempo, custos financeiros, fazer escolhas difíceis, enfrentar pressões e muitas vezes ter que trocar o descanso e o lazer pelos livros faz com que vários jovens abandonem o sonho de chegar ao ensino superior ou de concluí-lo para construir uma carreira profissional.

Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a educação escolar é composta pela educação básica e pela educação superior. A educação básica contempla a educação infantil (creche e pré-escola), o ensino fundamental e o ensino médio. A educação superior, por sua vez, oferece cursos de graduação, pós-graduação, sequenciais e de extensão, não sendo os dois últimos investigados na PNAD Contínua.

Dados mais recentes da PNAD Contínua 2019, divulgados em julho de 2020 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que na população de 25 anos ou mais, 6,4% eram sem instrução, 32,2% tinham o ensino fundamental incompleto, 8% tinham o ensino fundamental completo e 4,5%, o ensino médio incompleto. Ainda que esses quatro grupos tenham apresentado pequenas quedas entre 2018 e 2019, mais da metade das pessoas de 25 anos ou mais não completaram o ensino médio no Brasil.

Apesar de ter crescido o percentual de pessoas com ensino superior completo no Brasil, de 16,5% para 17,4% entre 2018 e 2019, o número ainda é muito baixo e faz o país ter uma das piores taxas de ensino superior no mundo, onde países ricos chegam a cerca de 40%.

Nesse universo de jovens que lutam para construir a carreira profissional e conquistam espaço no ensino superior está Davi Clementino Carneiro. Com 26 anos, ele é dentista, mestre em Ciências Odontológicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa, e já está cursando nova graduação. Davi é o destaque da quinta reportagem da série ‘Quem Estuda Vai Longe!’.

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Jovem, mestre e cientista!

Apesar da pouca idade, Davi criou um método de detecção de cárie dentária por fotoluminescência. A técnica usa processamento digital de imagem com inteligência artificial. Realizado com o apoio de bolsa do Programa Demanda Social (DS) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), o protótipo já se iguala a instrumentos comercializados no mercado mundial.

“Esse estudo específico começou pela observação dos instrumentos já existentes que auxiliam no diagnóstico de cárie, mas que ainda apresentam barreiras e dificuldades que impedem sua implantação para o cirurgião-dentista, sejam elas econômicas, geográficas ou de orientações de uso. A principal atividade relacionada ao profissional de odontologia diz respeito ao tratamento e prevenção da cárie dentária, então, é indispensável que avanços e aprimoramentos sejam feitos para o melhor diagnóstico à essa doença”, explicou Davi a uma publicação da UFPB.

Davi, aos 26 anos, já tem mestrado (Foto: Arquivo pessoal)

Davi explicou à publicação da UFPB como o método de detecção pode ajudar em diagnósticos odontológicos mais precisos.

Tecnologia desenvolvida por Davi Clementino na UFPB (Foto: Arquivo Pessoal)

“Infelizmente é comum que o tecido dentário sadio seja retirado em decorrência de diagnósticos incorretos ou não documentados corretamente. Nosso foco é possibilitar melhores visualizações de estruturas e regiões passíveis de promover morbidade – ou já ativas – e responsáveis por sua presença”.

Davi Clementino

O método ainda será aperfeiçoado, garantiu o jovem mestre à publicação. “O dispositivo passa por atualizações internas e aprimoramentos em seus módulos, para que possa não apenas realizar detecção de desmineralizações dentárias, mas quaisquer tipos de lesões intraorais”.

Descobrindo o sentido de estudar

Davi disse ao Portal Correio que a vida de estudante não era das melhores. “Na realidade, durante toda minha adolescência, meus resultados eram entre regulares e ruins”, revelou. “Minha maior dificuldade era não perceber que os conteúdos que eram lecionados não se limitavam a uma aprovação no vestibular, mas que seriam em parte usados em diversas atividades pelo resto da vida”.

A rotina se dividia entre levantar cedo, atravessar a cidade – do Valentina ao Castelo Branco – para ir às aulas, e se entregar para os jogos eletrônicos ou se dedicar a atividades que, segundo ele, não iriam acrescentar de alguma forma. “Quando se aproximou o período do vestibular, ainda tentei me dedicar mais com cursinhos ou outros materiais, mas se tratava de uma rotina que não era a minha, que me fadigava facilmente e que não me prendia o foco”.

Reprovado em quatro vestibulares

Ele conta que em 2012 fez vestibular para quatro instituições de ensino superior e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas foi aprovado apenas na segunda chamada no Centro Universitário de João Pessoa (Unipê), no curso de Odontologia. “Na época, minha decisão pelo curso se baseava no fato que usava aparelho e percebia que as dentistas que me atendiam aparentavam ter boa condição financeira”, observou.

A partir da entrada no curso, ele foi descobrindo o que gostava mais e buscando identificação. “Só durante os dois primeiros anos de curso percebi que era necessário andar, de fato, com minhas próprias pernas e perceber se estava no caminho correto”.

Antes de voar alto, Davi enfrentou dificuldades e foi reprovado em quatro vestibulares (Foto: Arquivo pessoal)

Ele conta que gostava das atividades desempenhadas nos primeiros laboratórios e que conseguia se destacar em lideranças como a representação estudantil e na apresentação em congressos e seminários. “Em 2015, tive a oportunidade de ser aprovado em primeiro lugar no Processo Seletivo de Transferência Voluntária (PSTV) para a Universidade Federal da Paraíba (UFPB), instituição que tinha o sonho de frequentar”.

Mas o sonho da aprovação na UFPB esbarrou, inicialmente, em algumas dificuldades. “Passei por dificuldades para me estabelecer, sofri preconceito de alunos e professores, por ser aluno vindo de outra instituição, e problemas para me adaptar ao ritmo de estudo de outro lugar”, afirmou.

Mais uma graduação

Ao se formar na UFPB em 2018, ele percebeu que a Odontologia não se limitava a um jaleco. “Uma ciência que eu poderia unir a tudo que sempre amei e não percebi: tecnologia”. A partir de então, os caminhos do jovem estudante começaram a ficar mais claros. “Em 2019 fui aprovado no mestrado em Ciências Odontológicas pela UFPB, onde fui também bolsista Capes. Meus esforços se voltaram para o desenvolvimento de ferramentas para auxiliar o diagnóstico de cárie e facilitar o dia a dia de dentistas e profissionais de saúde”, disse.

Após a defesa em maio de 2021 e sob reflexo dos orientadores, ele hoje faz mais uma graduação e também é aluno de Ciência da Computação no Unipê, com a intenção de ampliar os conhecimentos e solidificar a união entre tecnologia e odontologia.

Virando adulto rápido

Davi teve da família todo o apoio que precisou para escolher os caminhos profissionais, mas precisou virar adulto muito rápido depois que o pai se mudou para outro estado. “Quando estava começando o curso de Odontologia em 2013, meu pai precisou se mudar para Alagoas, numa viagem de mais de 5 horas de onde moro. Desde então, sou responsável não somente pelo meu conhecimento e trabalho, mas por feiras em mercados, idas a farmácias e atenção familiar”.

Davi escolheu se dedicar à vida de professor (Foto: Arquivo pessoal)

Ele decidiu não abrir clínica odontológica, mas se dedicar à docência. “Apesar de todo o processo, confirmo e agradeço que meus pais me apoiaram em tudo que foi necessário. Finalizar um curso de Odontologia e decidir não abrir clínica, mas seguir para docência pode levar muitas pessoas que não entendem a complexidade do assunto a desacreditarem, mas isso nunca aconteceu com minha família”.

Para Davi, o ócio pode ser um aliado

“Nem sempre estar em ócio é negativo”, afirma. Davi explica que busca nas oportunidades de “não fazer nada” chances de continuar aprendendo e descobrindo novidades. “Passei e continuo passando muito tempo procurando qual a melhor forma de lidar com esses momentos, e acredito que, para mim, unir o que me edifica com o que me dá prazer é a melhor solução. Se vejo televisão, encontro conhecimento em vídeos, filmes e músicas que me ensinam algo, mesmo que não seja propriamente sobre o assunto de provas. Se me volto para estudar, procuro a forma mais confortável e preparada para que nada me tire a atenção ou me desconforte. Tudo isso leva tempo e investimento, mas que a longo prazo funciona”, disse ao Portal Correio.

Aprendendo com os erros

Davi não hesita em afirmar que o fracasso é essencial para todos que querem conhecer o sucesso. “Sou grato pelos erros que já cometi”, disse, enfatizando a necessidade de se evoluir com as falhas que o levaram a fracassar em alguns momentos.

“Sou grato pelos vestibulares que reprovei, pois me fizeram perceber, mesmo que por dor, que o estilo de vida que levava não me preparava para ser o profissional que sou hoje. Fracassei em reprovar disciplinas ou decepcionar professores, mas guardo tudo que aconteceu comigo e tenho a humildade de entender o quanto cada experiência me edificou”.

Davi Clementino

Sonhos realizados através dos estudos

Davi credita tudo o que conquistou até agora aos estudos. “Fui professor convidado em universidades e congressos, editor e orientador em artigos de revistas científicas, premiado pela Capes e vivi experiências que jamais imaginaria menos de dez anos atrás”.

O jovem mestre foi o primeiro bolsista destaque da Capes do Programa de Pós-graduação em Odontologia da UFPB desde a criação, em 1990. “Tive a oportunidade de desenvolver uma ferramenta para auxiliar na detecção de lesões de cárie, fortalecendo a inovação tecnológica brasileira e do Nordeste, que já é presente entre as dez melhores nesses parâmetros”.

Davi já está na segunda graduação (Foto: Arquivo pessoal)

Para o futuro, ele pensa em voos cada vez mais altos. “Pretendo continuar os projetos atuais ingressando no doutorado e fortalecer as conexões internacionais já iniciadas, além de continuar colaborando com o ensino correto da Odontologia e suas relações com a tecnologia”.

Professor relembra dedicação de Davi

Fábio Correia Sampaio é formado em Odontologia e Química pela UFPB, com doutorado em Cariologia pela Universidade de Oslo-Noruega e pós-doutorado em Bioquímica pela USP-Bauru- SP. Ele percebeu logo os interesses de Davi na academia, mas sentiu que o jovem ainda buscava um foco.

Professor Fábio Correia Sampaio (Foto: Arquivo pessoal)

“Davi foi nosso aluno de Cariologia Clínica em 2015, esse componente curricular estava na metade do curso e naquela época lembro que ele demonstrava interesse por materiais dentários e simultaneamente por pesquisas de gestão e informática. A impressão que tive é que ele era bem determinado, tinha muitas ideias, mas ainda não tinha um foco, o que é muito comum entre os discentes em Odontologia. Nossa relação nessa época foi apenas de professor-aluno e não tive oportunidade de desenvolver pesquisas em cariologia com ele”, explicou. 

Fábio também é professor titular do Departamento de Clínica e Odontologia Social da UFPB e coordenador do Laboratório de Biologia Bucal (LABIAL), vinculado ao Programa de Pós-graduação em Odontologia e ao Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares em Biomateriais (NEPIBIO).

Ele atua em linhas de pesquisa relacionadas a estudos bioquímicos, epidemiológicos e de diagnóstico da cárie dentária e assuntos correlatos como o uso racional de fluoretos para prevenção e controle da cárie em crianças e adultos.

Davi: ‘a pessoa certa na hora certa’

“Davi entrou no Programa de Pós-graduação em Odontologia da UFPB, mas como eu tinha muitas orientações naquela chamada, ele estava designado para trabalhar com outro professor. A linha de pesquisa ofertada para Davi não era exatamente a que ele queria e contamos com a sensibilidade do coordenador na época que o indicou para minha orientação. Ele foi a pessoa certa na hora certa”.

Davi se tornou orientando no momento em que Fábio abria a linha de pesquisa de diagnóstico e monitoramento de cárie por fluorescência a laser. “Estávamos firmando parceria com uma empresa da Holanda (Inspektor Research Systems) para uso do mais novo equipamento deles. Em 2019, recebemos a visita do professor Elbert de Josselin de Jong da Holanda e Davi fez o curso completo. Ao final, posso afirmar que ‘foi como colocar um peixe dentro d’água’”, comemora Fábio.

Davi com o professor Elbert de Josselin de Jong (Foto: Arquivo pessoal)

O professor explica que Davi tomou muito gosto pelo tema e foi quando deram início à parceria com o professor Raimundo Menezes do Centro de Energias Renováveis da UFPB para desenvolver um protótipo do modelo holandês, com perspectivas de ser mais barato e voltado para dispositivos móveis.

“No final, posso afirmar que Davi teve sorte de estar no nosso laboratório na hora certa. Digo isso porque não teria como colocá-lo na linha de pesquisa de diagnóstico de cárie com Inteligência Artificial se ele tivesse chegado antes. Entretanto, não posso negar todo o empenho, o esforço e a coragem dele em desbravar uma área ainda pouco explorada pela Odontologia e que vem se expandindo muito em função da pandemia. Dizem que ‘educar não é encher um balde, mas acender uma chama’. Acho que o que fiz foi somente acender a chama e Davi agora segue trilhando o caminho que ele sempre quis, mas ainda não tinha despertado para isso”, afirmou.

Críticas à educação no Brasil

Ao analisar a situação atual da educação no Brasil, Davi defende que o país tem educação exemplar e de qualidade, mas a aplicação não ocorre da forma correta. “É necessário perceber que a formalidade e a metodologia de quadro já foi uma boa estratégia, mas que não funciona de duas gerações até hoje. Atualmente, se aprende muito mais quando se usa a problematização e a autonomia do estudante, que tem acesso a um universo de conteúdos na internet”.

Para ele, o ensino remoto durante a pandemia poderia ter sido melhor aproveitado. “A pandemia forçou o uso do ensino remoto, que já é realidade em diversos países. A questão é que tivemos que aplicar também da forma incorreta. Aulas gravadas até funcionam, mas como material de consulta e auxiliar no processo de aprendizagem. É necessário ter humildade, se posicionar no ambiente digital que estamos vivendo e nos preparar para melhores exemplos, melhores formas de falar e melhores planejamentos, para alcançar melhores resultados”.

Para o professor Fábio, infelizmente, a educação ainda não tem a valorização que merece. “Sabemos que a educação é transformadora, libertadora em vários aspectos, mas ainda estamos bem longe de termos uma educação com possibilidade de atender às demandas dos jovens brasileiros”.

Fábio aponta problemas como o baixo nível de aprendizado e o corte de verbas. “Estima-se que em 10 anos perdemos 73% da verba destinada às universidades federais”. Na minha opinião o que salva é que ainda temos docentes e técnicos comprometidos com a ciência, verdadeiros heróis que trabalham e se esforçam para educar e pesquisar”, afirmou.

Ele cita como exemplo o trabalho da Escola Técnica em Saúde do Centro de Ciências da Saúde (CCS-UFPB) que rapidamente adaptou o laboratório deles para diagnóstico do novo coronavírus (SARS-Cov-2). “Infelizmente, o negacionismo e as generalizações prejudicaram muito as universidades que são vistas como desvinculadas da sociedade. Temos algumas saídas e reflexões importantes, como a internacionalização e gestão inovadora, maior proximidade da indústria em um novo modelo de financiamento. A universidade deve ser uma mesa com quatro pernas: pesquisa-ensino-extensão e inovação tecnológica. Essa última precisa ser também valorizada”, finalizou.

Conselhos para você, estudante

Para quem quer seguir passos semelhantes aos de Davi na vida estudantil e profissional, ele deixa claro que nunca é tarde para rever decisões ou fazer escolhas, sempre a favor da realização pessoal. “Não tome decisões precipitadas, e se tiver tomado, não relute em voltar quantos passos forem necessários para estar em um ambiente saudável e que te faça feliz. Absolutamente nunca está tarde para recomeçar e está tudo bem em reconhecer que não se sabe estudar ou que não há energia para ter foco. Comece pelos passos maiores, decisões e oportunidades que te aparecem todos os dias e que você, por um motivo ou por outro, acaba dizendo não”.

VÍDEO: Davi orienta como dever ser a jornada de quem precisa estudar para alcançar objetivos

Para seguir o caminho certo, é importante encontrar habilidades e pontos fortes que podem ser explorados. “Ache o seu ponto forte e abuse dele. Você se comunica bem? Divulgue o que sabe, ensine outras pessoas (mesmo que seja pouco), e faça acontecer. Sabe outro idioma ou tem alguma habilidade artística? Una tudo isso a uma área profissional e seja diferente. Talvez alguma dessas tentativas te frustrem ou façam você se perguntar se está no caminho certo, e você pode experimentar quantos caminhos quiser até achar o que foi feito para você”, finalizou.

O professor Fábio defende a persistência nos sonhos, mas com conhecimento, disciplina, esforço e determinação. “De início, certamente, os sonhos podem ser um pouco borrados como uma imagem sem foco. E, aos poucos, as imagens se tornam mais nítidas. E não percam as oportunidades! Afinal, as verdadeiras oportunidades surgem para aqueles que estão preparados para identificá-las”, concluiu.

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