O “eu lírico” feminino
Observe o leitor os seguintes versos de Gonçalves Dias, Chico Buarque e Paulo Vanzolini, respectivamente:
“Eu vivo sozinha
Ninguém me procura
Acaso feitura
Não sou de Tupá?
Se algum dentre os homens
De mim não se esconde
Tu é – me responde –
Tu és Marabá.”
***
“E que venho até remoçando
Me pego cantando
Sem mais nem por quê.
E quantas águas rolaram
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você…”
***
“Volto pra casa abatida
Desencantada da vida
O sonho alegria me dá
Nele você está…”
O quer têm em comum os versos citados?
1 São escritos por um autor masculino, mas na “narrativa” feminina.
O que aconteceu foi que os autores, embora do sexo masculino, usaram o “eu lírico” feminino.
E o que é “eu lírico?
“Eu lírico” é a “voz que fala no poema”. Equivale ao narrador, na prosa.
Jamais devemos confundir autor com narrador ou com o “eu lírico”. Autor é quem concebeu a obra; narrador e “eu lírico” são quem conduz o discurso. Tal distorção leva muita gente a confundir as coisas. De modo que, às vezes, você escreve uma obra de ficção (ou poema) e as pessoas associam à sua vida. Quantas vezes já não escrevi, aqui, neste espaço, textos que nada tinham a ver comigo e as pessoas me pararam para perguntar:
Aquilo aconteceu mesmo com você?
Será, então, que Paulo Honório de Graciliano é o famoso escritor alagoano, porque o texto está em primeira pessoa? Claro que não!
Quando o autor escreve um texto, separa-se da obra. É claro que pode ter se inspirado na realidade (literatura é uma fusão do real e o imaginário). Mas daí a concluir que o que o autor escreve aconteceu, obrigatoriamente, como ele é “forçar a barra”.
De modo, leitor, que você nunca deve confundir: As personagens encarnadas nos textos dos autores citadas são criação deles e estes colocaram o escrito em primeira pessoa para maior aproximação com o leitor e maior “realismo” do poema.
Mas ridículo mesmo é quando um homem vai cantar a música (caso dos dois últimos textos) e inverte o “Eu lírico”.
Não se preocupe, amigo: cante a música conforme ela é no original; ninguém vai duvidar da sua masculinidade (ou vice-versa, no caso das mulheres) se você se mantiver fiel ao original.
A não ser que você não esteja tão seguro(a) acerca da natureza de sua sexualidade!
*João Trindade