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No princípio, era o ritmo: a ginga e o sambado de Jackson do Pandeiro

São muitos os filhos musicais de Jackson do Pandeiro. O fraseado, a divisão rítmica, a improivisação, a velocidade, a desconstrução dessa velocidade no meio da canção, o bom humor. E uma interdisciplinaridade musical que o pandeiro simboliza muito bem. Sua origem paraibana e o instrumento representam o encontro do forró com o samba, mistura da qual Jackson é o expoente máximo. Mais que misturar chiclete com banana, que ele cantava ironicamente, essa foi a mistura em que ele botou para lascar.

Hoje, Jackson completaria 100 anos e seu ritmo foi ouvido com força nos últimos meses. Ele batizou um festival de artes, foi estudado em escolas, sua imagem decorou locais públicos, um filme (de Marcus Vilar e Cacá Teixeira) foi lançado contando sua história como documentário, um livro (de Astier Basílio) foi lançado contando sua história como texto teatral, bandas uniram forças para cantar suas canções (no caso, a Cabruêra e Os Fulano), músicas foram compostas em sua homenagem (como a de Jessier Quirino), uma exposição retrospectiva de sua vida fica em cartaz até o ano que vem em Campina Grande.

E vem mais por aí. O livro de Basílio é a base para um musical que acabou não sendo montado a tempo para o centenário, mas que ainda está nos planos para ganhar os palcos. O pesquisador Rodrigo Faour, responsável pelo lançamento de uma monumental caixa de CDs do Rei do Ritmo, que somava mais de 200 músicas, prepara outro pacote de Jackson — agora de suas gravações na Columbia e CBS, a sair pela Sony. Seis álbuns saíram nessa sexta (30) em streaming.

Jackson é uma fonte inesgotável, daqueles que podiam reinventar uma canção simplesmente por cantá-la.

Alagoa Grande foi a base

E, no princípio, era o ritmo. Com ginga e sambado, surge uma mistura de chiclete com banana, Brejo e morro carioca, coco e bebop. Mas, antes mesmo de ser coroado Rei do Ritmo, José Gomes Filho, o Jackson do Pandeiro, teve sua iniciação musical guiada pela mãe e pela vida cultural que Alagoa Grande lhe proporcionou.

Quando era apenas um moleque, pinotando pela feira pública da cidade ao lado da mãe, Flora Mourão, ficou encantado com o ganzá tocado pela mãe, uma coquista. “Os folguedos e tradições populares da região, com muita ciranda e coco de roda, foram essenciais para a formação musical de Jackson do Pandeiro”, destaca o jornalista e pesquisador Fernando Moura, autor, com Antônio Vicente, da biografia Jackson do Pandeiro, o Rei do Ritmo (Editora 34).

Contudo, o especialista faz questão de lembrar o contexto da cidade na época em que Jackson viveu. Enriquecida pela produção de cana-de-açúcar, repleta de engenhos por toda a região, a cidade do Brejo paraibano foi uma das primeiras do interior do estado a ganhar os trilhos de trem, antes mesmo de Campina Grande. Era o ponto de passagem para muita gente.

Em uma dessas, conheceu o piano. “Jackson estranhou muito aquilo. As famílias abastadas da cidade encomendavam aqueles pianos como símbolo de riqueza e sofisticação, obrigavam as filhas a aprender a tocar, mas não tinha ninguém muito virtuoso por ali. Moleque acostumado com coco de roda, não viu graça naquilo. Só veio a entender a beleza do instrumento quando viu músicos de orquestra profissional tocarem”, lembra.

Por estar em uma cidade estratégica e rica para os padrões da época, José também captou referências do Brasil e do mundo. Como mestre da música nordestina, bebeu da fonte de figuras como Zé do Norte, mas ao chegar ao Rio de Janeiro, passou a ser respeitado como um exímio sambista. Isso se deve à sua formação  em Alagoa Grande, ouvindo na rádio grandes cantores do gênero.

Outra referência externa é seu próprio nome artístico, que deriva do nome de um ator dos filmes de faroeste que ele via nos cinemas da cidade, Jack Perrin. Ao pesquisar o assunto para a biografia, Fernando Moura custou a encontrar alguma imagem da estrela hollywoodiana, já que, na época, a internet ainda dava seus primeiros passos.

“Eu achei que Jackson tinha se identificado com a figura de Jack, mas era um loiro de olhos claros, não tinha nada a ver. Depois que eu vi em movimento que eu vim a entender o que era: Jack era munganguento. Um ator canastrão, mesmo. Fazia muita careta e movimentos corporais caricatos. Jackson gostou disso”, revela.

Campina: régua e compasso

Final de 1930. Jackson do Pandeiro, após quatro dias de caminhada, chega a Campina Grande. Vem com a mãe e os irmãos. Fogem da fome. Com a morte do patriarca, a chefia da casa é posta nos ombros daquele que herdou o nome do pai: José Gomes Filho. Sonha em ganhar o seu pão com música, mas é em outros empregos, sobretudo numa padaria, que Jackson do Pandeiro se desdobra para sustentar a casa.

Se em Alagoa Grande se vê o talento bruto surgir, e o lugar de nascimento é como uma fonte inaugural onde bebeu, em Campina Grande este talento começou a ser burilado e expandido, recebendo estímulos musicais e artísticos dos mais diversos.

A presença de cena e os dotes como ator encontraram em um pastoril, realizado no bairro do Zé Pinheiro, o palco inicial para Jackson que àquela altura se apresentava como Palhaço Parafuso.

Foi no carnaval de 1953 do Recife, que Jackson do Pandeiro, com “Sebastiana”, atingiu o sucesso nacional, sem ter saído do Nordeste. O folião inveterado descobrira o festejo do Rei Momo, em Campina Grande. Em 1939, Jackson trabalhava pincelando pão na Panificadora Rainha das Neves. Não resistiu aos acordes eletrizantes da marchinha que contagiara o país naquele ano.

“Eu escutava os caras cantando ‘Jardineira’, e o contrabaixo marcando aquilo, bem bonito”. O chamado do carnaval falou mais alto.“Tá doido? Vou ficar lá nessa bexiga! Vou é sair daqui de qualquer maneira”.

Jackson aprimorou seu talento bruto na zona de meretrício da feira central de Campina Grande. Galgou posições. Seu talento fez com que fosse alçado à condição de músico da banda do legendário cassino Eldorado, no qual atuou entre 1939 e 1944.

Fernando Moura e Antonio Vicente Filho, em Jackson do Pandeiro: o Rei do Ritmo, atestaram a importância do Eldorado na formação do músico: “Foi lá que teve acesso contínuo a sonoridades diversificadas, universais, como o blues, o jazz, o chorinho, o maxixe, a rumba, o tango, o samba, entre outras (…)”.

Não é por acaso que a cidade que o acolheu é paisagem e personagem de muitos de seus sucessos e o preito de gratidão é prestado em “Forró em Campina Grande”: “Bodocongó, Alto Branco e Zé Pinheiro/ Aprendi tocar pandeiro nos forrós de lá”.

Entre a cidade em que nasceu e a cidade a qual emigrou, há em comum o fato de terem acidentes geográficos em seus nomes e um adjetivo a impor força e pujança. Se em Alagoa Grande, Jackson bebeu nos ritmos do coco, da cantoria de viola e acompanhou a mãe nos sambas (como eram chamados os forrós antigamente), em Campina Grande, o artista encontrou a planície de onde pode vislumbrar o horizonte de sua carreira.

Sucesso de ‘a’ a ‘ipsilone’

Com mais de 400 músicas gravadas, a discografia de Jackson do Pandeiro ainda guarda pedras preciosas a serem devidamente garimpadas, lapidadas e apresentadas com pompa e circunstância. Ainda assim, não é possível ignorar que dezenas de suas canções se tornaram sucessos e mais de uma entrou para o rol de composições definitivas para a música popular brasileira.

Fernando Moura destaca “Chiclete com banana” acima de todas. “É uma história meio controversa, alguns dizem que está entre as maiores, outros a classificam como a maior música brasileira de todos os tempos, por seu simbolismo”, pontua o biógrafo do Rei do Ritmo. O hibridismo ousado até hoje, entre o samba, os ritmos internacionais e células rítmicas do coco de roda renderam uma das canções mais memoráveis da música brasileira.

Ela veio em 1959, uma parceria de sua então esposa Almira Castilho com Gordurinha. A canção foi regravada inúmeras vezes, sendo talvez a mais importante a de Gilberto Gil,  lançada em 1972 no disco, Expresso 2222. No entanto, bem antes de se mudar para o Rio de Janeiro, ele já havia gestado algumas de suas canções mais icônicas.

Em Recife, na mesma epóca em que começou a cantar na Rádio Jornal do Commércio, formou dupla com Rosil Cavalcanti, com quem foi parceiro em diversas composições, como “Na base da chinela”. Foi nesta época, também, que Jackson conhece Almira, com quem formaria uma dupla não só na vida pessoal, mas também na carreira artística.

Em 1953, gravou seu primeiro disco, logo com dois grandes sucessos: o coco “Sebastiana”, de Rosil Cavalcanti, e o rojão “Forró em Limoeiro”, de Edgar Ferreira. Em 1956, já morando no Rio, o “Canto da ema” era mais um grande hit que levava as paisagens nordestinas para as rádios de todo o país. Junto consigo, o artista trazia as referências de um Brasil que aquele Brasil do Sudeste desconhecia.

Para o escritor, compositor, poeta e dramaturgo Braulio Tavares, ele apresentava o movimento, a dança das rodas de coco, a dança negra. “Diferente de Luiz Gonzaga, que não tinha muito movimento de palco, principalmente pelo peso da sanfona, Jackson corria de um lado para o outro”, pontua. A dança e o rompimento com as convenções da época logo trouxeram os olhares (e ouvidos) para o paraibano.

Jackson conta diversas vezes em depoimentos gravados sobre uma noite de apresentação no Rio de Janeiro, quando decidiu dar uma “umbigada” em Almira, durante a canção “Sebastiana”. “A casa veio abaixo. A umbigada, evidentemente tem uma conotação sexual, mas também é um convite para a dança. Esse tipo de coisa tem em dança popular, mas os palcos do Sudeste eram muito pudicos na época. Esse tipo de coisa para eles era tipo o baile funk quando surgiu, ou uma dança na boquinha da garrafa, um comportamento considerado vulgar, mas que a cultura popular abraça desde sempre. O povo adorava!”, pontua.

Mas, para além da performance de palco, a potência de Jackson do Pandeiro é sua capacidade de trazer músicas magnéticas, proporcionando um convite à interação com o público. “A principal característica dos folguedos coletivos nos quais Jackson cresceu inserido é que todo mundo canta e dança. Isso ficou bastante marcado no repertório de Jackson. Os compositores que trabalhavam para ele, gente como Rosil Cavalcanti e Edgar Ferreira, entendia isso perfeitamente. Toda música de Jackson tem um refrão pra que o público cante junto”, salienta Braulio.

Importante destacar que nem todos os grandes sucessos de Jackson são de sua autoria, mas é possível que ele tenha mais crédito do que as fontes oficiais expõem. “Tinha várias canções que ele assinava como José Gomes, seu nome de batismo. Em algumas, ele não aparecia como compositor, preferia que Almira Castilho, sua esposa, que também participava da criação, ficasse com os créditos”, informa Fernando Moura.

Foram anos de glória. Mas nos anos 1960, a ascensão da bossa nova e da jovem guarda, o fim da parceria (e do casamento) com Almira e um acidente que deixou o músico com os dois braços imobilizados por um período trouxeram uma maré baixa para Jackson.

Divisão que só soma

Todo o legado musical de Jackson do Pandeiro, carregado por divisão melódica e rítmica singulares, lhe rendeu seguidores e admiradores por décadas a fio, até os dias atuais. Ele conquista o respeito de seus contemporâneos e se torna um ponto de referência para os que vieram depois.

Lenine, autor da canção “JackSoul brasileiro”, uma ode ao repertório do paraibano, é fã confesso e escancarado. “Jackson tinha essa arte do improviso da divisão. A forma como ele encaixava a voz nas melodias era algo encantador”, conta.

Quando pensamos na influência de Jackson do Pandeiro a outros artistas, a tendência é pensarmos em repertório com presença maciça de percussão, uma música acelerada. Ledo engano.

Braulio Tavares dá a letra: o primeiro nome que vem à sua cabeça diante dessa questão é nada mais, nada menos que João Bosco. “Não o conheço pessoalmente, mas sou grande fã e em diversas entrevistas, vejo João Bosco fazer questão de salientar a divisão melódica e rítmica que Jackson fazia, era uma grande referência para ele próprio, um dos maiores nomes de nossa música”, pontua. Outro nome gigante, como bem lembra Tavares, é João Gilberto, que elogia Jackson em entrevista um jornal brasileiro no início dos anos 1960.

Durante o Festival de Artes Jackson do Pandeiro, o pesquisador Claúdio Campos, responsável pela primeira tese de doutorado do Brasil sobre Jackson do Pandeiro, relatou uma história curiosa que exemplifica esse alcance. Ao decidir publicar um artigo científico sobre suas pesquisas, Campos menciona a influência do Rei do Ritmo na obra de Guinga, respeitado compositor e violonista da MPB. “O parecerista questiona aquela afirmação, acrescentando que deveria ter algum erro de informação. Apenas devolvi aquilo com a música ‘Influência de Jackson’, de Guinga, e decidi publicar o artigo em outra revista”, lembrou.

Puxando para o presente, Braulio Tavares acredita que praticamente toda a cena musical nordestina pós-manguebeat carrega o DNA jacksoniano consigo. “Se você escuta Querosene Jacaré, de Recife, ou Seu Pereira e Coletivo 401 e Cabruêra, é fácil de ver a influência latente”, aponta.

Parceiros: um a um

Jackson era um sujeito de parcerias. Do começo ao fim da carreira, os encontros pessoais e profissionais ajudaram a sua carreira.

Rosil Cavalcanti — Pernambucano que desenvolveu uma carreira de compositor e apresentador em Campina Grande. Mas foi em Recife que ele e Jackson formaram a dupla Café com Leite. São de Rosil algumas dos principais sucessos de Jackson — em parceria, ou só de Rosil.

Almira Castilho — A pernambucana conheceu Jackson em 1952, na Rádio Jornal do Comércio. Casaram-se em 1956 e formaram uma dupla de sucesso até a separação, em 1967. Ela dançava e compunha com Jackson.

Gordurinha — O baiano já tinha uma carreira como compositor quando assinou “Chiclete com banana” com Almira Castilho. Os dois assinam outro clássico absoluto: “Meu enxoval”.

Alceu Valença — Quando Jackson estava por baixo, Alceu Valença apareceu em sua porta no subúrbio, com Geraldo Azevedo do lado. Os dois cabeludos queriam o velho mestre cantando com eles em um Festival da Canção, em 1972. Anos depois, Alceu e Jackson fariam juntos shows em diversas cidades a bordo do Projeto Pixinguinha.

Redescoberto pela moçada

Jackson do Pandeiro viveu seu auge nos anos 1950 e, até meados da década seguinte, desfrutou da popularidade que poucos artistas alcançam. No entanto, com a virada da década e uma nova tendência musical tomando conta das rádios e, agora com mais força, da TV, era tempo de vacas magras.

Os jovens queriam a Jovem Guarda, com seus brotos e caras legais. Em 1963, Jackson até gravou “Twist, não”, de João Grilo e Roberto Faissal, um protesto contra a crescente invasão do novo ritmo que vinha da América do Norte. Ele era “coisa do passado” para a garotada.

Não, nem toda garotada o via como obsoleto. Foi justamente por conta de grupos de “moçadas” vindo do Nordeste que o cenário viria a mudar. Gilberto Gil, ainda bem moço, já demonstrava apreço pelo repertório jacksoniano. Sob sua influência, Gal Costa regrava e lança “Sebastiana” em seu disco auto-intitulado de 1969, trazendo para os ouvidos de outra geração a batida ritmada do paraibano.

Para Gilberto Gil, era um autêntico representante do Brasil profundo. “Jackson do Pandeiro é um dos maiores amores que eu tenho. Um grande artista, típico daquela verve interiorana, nordestina especialmente. É um artista que nasce no entrecruzamento da vida rural brasileira e o mundo urbano, que começavam a se expandir naquela época em que ele surgiu”, conta. A Tropicália o abraçou.

No entanto, outra leva de nordestinos também foram fundamentais para pavimentar o caminho até o status de lenda da música que Jackson adquiriu. Geraldo Azevedo afirma que o escuta desde que se entende por gente. “Mais tarde, tive o prazer e a honra de conviver e ficar amigo de Jackson. Nos conhecemos quando eu estava lançando meu primeiro disco, com Alceu Valença. Foi um artista que marcou a história do Brasil de uma forma muito grande em termos de ritmo, com muita inovação”, conta.

Por falar em Alceu, foi ele um dos responsáveis por trazer Jackson de volta para os holofotes. Geraldo, ele e Jackson interpretaram “Papagaio do futuro” no Festival Internacional da Canção, em 1972. A relação de admiração e amizade se estendeu pelos anos, até a morte do Rei do Ritmo, em 1982. Em 1979, Jackson pôs seu dedo em um dos grandes sucessos de Valença, “Coração bobo”. “Ele pediu para mudar ‘explode’ para ‘pipoca’. Ficou, então, ‘o coração dos aflitos / pipoca dentro do peito’. Muito melhor!”, relembra.

*Texto de Renato Félix e André Luiz Maia, do CORREIO, e Astier Basílio (especial para o CORREIO em Moscou – Rússia)

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