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‘Um cão’ é a coluna da semana do professor João Trindade

Estava jantando, quando ele chegou. Com certeza, fazia uns três dias que não comia. Claudicava. Quase não conseguira subir o batente, para chegar até mim. Os olhos eram pidões: implorava algum alimento, qualquer que fosse.

Dei-lhe um bom pedaço de carne de sol. Comeu e pediu mais. Dei-lhe outro. Com certeza, era melhor do que os pedaços de osso que pinçava por entre os sacos de lixo, sobra dos sacos de supermercados.

Um amigo que estava comigo afirmou:

– Esse cachorro é jovem. Conheço-o. É de gente aqui da torre, que o abandonou. O pobre… só porque um carro o pegou.

Entendi, então. O meu novo amigo fora vítima de atropelamento. Um carro o pegou. Só agora percebi que, além de claudicar, era empenado. Era curvada a espinha dorsal. Por isso caíra, por duas vezes, quando tentara alcançar a minha mesa.

Olhei para o cão. Traços de um perdigueiro: as manchas denunciavam.

De súbito, o cão deixa a nossa mesa. Caminha, resoluto, para outra, de um pessoal que chegara num chevette. Foi incrível. O rabo balançava freneticamente, enquanto o pessoal da mesa tentava disfarçar. Mas o cão balançava, freneticamente, o rabo e foi, resoluto, em direção à mesa. Os ocupantes ainda quiseram enxotá-lo, mas o cão os olhava fixamente, com um olhar pidão; agora não mais carente de comida. Olhava como se pedisse um alento; um retorno ao lar antigo; um retorno ao aconchego do dono. O pessoal fez vista grossa, mas o amigo que estava comigo, não! Como bom interiorano, resolveu enfrentar a turma, que ignorava o pobre cão.

– Oi, vem cá… Esse cachorro não é de vocês?

– Esse?

– Esse, sim. Não era o que vivia na casa de vocês?

– Era. Caçava com a gente.

– Pegava lambu?

– Não. Pegava quati. Cachorro bom, viu? Veloz. Não deixava escapar um…

E por que ele está assim?

– Ah, um carro pegou. A gente até levou para o médico, mas ele disse que não tinha mais jeito.

– Não tinha mais jeito, como? O cachorro não tá aí?

– Tá. Não tinha mais jeito para caçar.

Talvez envergonhada com nossas perguntas, a turma pede a conta.

O chevette sai. O cão cheira os pneus (por pouco não foi atropelado novamente). Os olhos estão dirigidos ao carro e o acompanham, até desaparecer da nossa visão. Os olhos estão fixos, brilhosos. E desta vez não é fome. É saudade.

Os ocupantes do veículo nem olham para trás…

O homem é, realmente, um animal.


* João Trindade | Publicada, originalmente, no extinto jornal O Norte, em 28 de agosto de 1999.

 

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